quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Uma breve reflexão sobre minha infância



Juraci Reis





A segunda de quatro filhos: dois meninos e duas meninas intercalados. Nasci em um ambiente simples, filha de camponeses. Meus pais dois anos antes de meu nascimento deixaram a terra natal onde viviam na roça, para uma cidadezinha também pequena, mas com um pouco mais de recurso e emprego. Meu nascimento marcou pelo fato de ter nascido sozinha com minha mãe, com o cordão enrolado no pescoço, enquanto minha tia e a avó paterna corriam para não me ver nascendo e meu pai ia a busca da parteira a uns dez quilômetros de casa, a pé. Minha tia questionada tempos depois, porque não ficou perto, me disse certa vez: eu não, você tava toda enrolada, sei lá o que podia acontecer! Me deu um nervoso!
Pequenina, ainda, vivi a experiência de ter sido “raptada” pela litorina, uma espécie de carrinho nos trilhos usado para manutenção da linha férrea. O condutor ao ver-me na linha sem ninguém me pegou e começou a procurar de quem era o bebê. Desde pequena tive fixação por retas e queria saber o que tinha depois. Também gostava de pular os dormentes, deste modo cheguei a ir longe enquanto meus pais estavam numa quermesse à beira da estrada de ferro. Deixei todos desesperados!
Minha infância se deu na turbulenta época da tirania ditatorial, filha de pai muito severo, mas de uma conduta ilibada, pude perceber o nervosismo estampado no rosto a cada vez que chegava em casa. Nem eu, nem meu irmão podíamos sorrir ou chorar. Ele logo se estressava. Na época tinha verdadeiro horror dele, mas depois quando já percebia os porquês passei a entender melhor e aceitar tantas vezes de surras sem precedentes. Meu pai trabalhava de dezesseis a vinte horas por dia, num regime completamente escravista. Então quando ele estava em casa as brincadeiras tinham que parar.
Meu irmão e eu brincávamos do que tínhamos em mãos. Fazíamos cavalinho de pau e bonecos de frutas que caiam dos pés, também brincávamos de lama e inventávamos muitas coisas. Só tinha eu e ele, mais nada, nem televisão, nem telefone, nem brinquedos comprados. Ah! Tinha um radinho de pilha, do qual ouvíamos as pessoas falarem e ficávamos intrigados como cabiam ali dentro. E curiosos, sacudíamos e tentávamos abrir até apanhar para aprender a não mexer em coisas de gente grande.
Minha mãe sempre dizia que eu nunca fui malcriada, mas era pirracenta, se teimasse em ficar em um determinado lugar, ali fazia xixi e se alguém me pegasse, voltava a deitar no mesmo lugar. Aos dois anos recebi de presente uma boneca de verdade, que chorava, fazia xixi e coco. Era minha irmãzinha, daí então perdi meu colo e ganhei responsabilidade, pois tinha que “cuidar/brincar” com ela. Mas isso não me incomodava, o que doía mesmo era o fato do carinho ser mais dela do que meu, visto a necessidade de cuidados pela asma e fragilidade. E foi brincando com ela que fui acidentada no rosto quando um pau bateu em mim enterrando pela boca adentro, precisando de cirurgia. Lembro-me nesta época de como era divertido correr com um pau na mão pela cerca de bambu, fazendo barulho para a cadela correr atrás e jogarmos o pau. Foi nesta brincadeira que meu irmão jogou em minha direção e da minha irmã, ambas sentadas no chão e esse pau bateu em meu rosto. Como em nossas mãos qualquer pedaço de bambu virava um cavalo, um boi, uma bicicleta ou uma carroça, assim, brincando, às vezes, acabávamos nos machucando. Mas tudo vale a pena se é brincadeira e estamos felizes. Mas meu irmão levou uma surra daquelas!
Neste mesmo ano, já aos quatro de idade, ganhei minha primeira boneca. Ela era pequenina, lourinha, abria e fechava os olhinhos e de louça. Essa é a lembrança mais bonita que tenho do meu pai. Foi quando ele me entregou a boneca e mandou que eu fosse mostrar a uma prima que era loura também, e era para dizer que a boneca era igual a ela. Neste dia pude perceber que meu era MEU PAI, ele demostrou carinho e falou com carinho, sem gritos ou repreensão. E era a mais linda das bonecas. Foi no Natal, mais precisamente dia 25 de dezembro de 1965, de manhã, e o mais feliz da minha primeira infância também. A imagem ficou em minha mente até hoje, com todo o cenário e as pessoas, mas naquele momento só tinha eu e meu pai. Nunca mais eu tive esse carinho dele. Os antigos achavam que se desse carinho ou sorrisse e brincasse com a criança ela ficava sem vergonha. Ouvia muito a frase: quem brinca com criança amanhece mijado! O mesmo ditado que era utilizado com relação ao fogo.
Aos seis anos mudamos para o centro da cidade e ficou um pouco mais fácil, pois não precisava andar tanto para chegar ao hospital (único lugar que eu ia nessa cidade) ou quando íamos embarcar para Massambará, lugar de meus avós maternos. Esse sim era um grande passeio, esperado durante o ano todo. Lá podíamos correr e subir em árvores, gritar, comer goiaba do pé, lá no alto; e andar de porteira. É, tinha uma porteira grande a uns duzentos metros da casa e nós adorávamos andar nela. Muito boa essa experiência. E se alguém nunca andou de porteira, é bom que experimente, vão gostar!
Essa também foi a idade do colégio. Êta sofrimento! Perdia minha família todos os dias, era essa a sensação que sentia. E doía muito, mas não sabia o que era saudade, pois ninguém explicava uma coisa tão complexa. Aliás, ninguém explicava nada para criança. Tudo, ou melhor, nada era assunto de criança.  Ah! Mas tem uma coisa boa na escola. Era lá que eu brincava com outras crianças. Não dentro dela, nem na sala de aula, que alias tinha até castigo físico. Mas do lado de fora. E chegava cedo, só para brincar no beco de casas em frente a escola, enquanto espera o sino tocar. Minha escola ficava no alto e se chamava "Escola José do Patrocínio". Embaixo era a rua onde vez por outra passava um caminhão levando refugo para a fábrica de papel, que ficava logo adiante, ou trazendo bobinas de papel já manufaturado. Entre a rua e a escada da escola ficava uma vila de casas e lá sentávamos para brincar, ora de três marias, ora de bafo-bafo e corda. A fila era na rua mesmo. Subíamos, e daí acabava a brincadeira. Lá dentro não era lugar de brincar, a fila nem podia ser torta, ninguém falava, mas na hora do recreio a gente podia. E nos esbaldávamos na roda; mãe rica, mãe pobre; amarelinha e no passaralho (passará não passará). Recordo-me que eram tantas coisas que eu queria aprender, mas não podia, tinha que ser somente o que a escola ensinava! Entretanto, disso não queria saber. De fato, tantas foram minhas dúvidas e interesses sem respostas que parei de indagar, engoli minhas perguntas e muitas coisas nem quero mais saber. Agora quero aprender outras e não ficar mais sem respostas, porque se uma pessoa não me responde eu não ligo, pergunto a outra, ou vou eu mesma procurar a resposta e pronto. Virei pesquisadora dos meus pensamentos.
Lembro-me da minha primeira professora com muito carinho! Ela me ensinou a ler em três meses apenas. Da terceira, da quarta e da quinta também, mas da segunda não. Essa era a bruxa dos contos de fadas. E o que falava e fazia, feria muito.
Neste período, em minha cidade não existia escola privada para as classes mais abastadas, eles tinham mesmo que estudar com a ralé, sendo a mais próxima, longe para muitos. Desse modo, estudavam ricos, pobres e aqueles muito pobres. Alguns tendo que andar quilômetros enquanto outros chegavam de carango. Para mim não era tão difícil, porque dos seis aos oito anos morei no centro da cidade ficando mais próximo também da escola, cerca de três quilômetros de distância.
A diferença de tratamento acentuava-se, era visível entre os que levavam merenda e os que não podiam e tinham que comer a aveia da escola muitas vezes com perna de barata, e isso virava motivo de chacota daqueles que tinham a mesa farta. Todas estas lembranças me fizeram reportar para os momentos da saída e a chegada da escola, a qual esperava também ansiosa para brincar na rua mais abaixo da minha casa e ou acima dela, pois tinha outra rua na parte de cima, com um descampado. Lembrei também da minha melhor amiga que tinha  câncer na perna e mesmo assim jogava futebol comigo, parando vez por outra por causa das dores e fraqueza. Eu na minha inocência não sabia o que era e achava que era só levar no médico que ela melhoraria. Quando da notícia de sua morte pouco tempo depois, deixou-me profundamente abalada. Aliás, a minha relação com a morte foi muito precoce, pois quando tinha cinco anos, também tive essa experiência e foi chocante. Eu queria que a mãe da criança a tirasse de dentro da caixa por que do jeito que a menina estava não iria conseguir respirar e aquela brincadeira não era boa. Já fazia muito tempo que ela estava brincando daquele jeito e eu não gostando nada daquela brincadeira. Levei um bom tempo para entender esse fenômeno. Mas quando aconteceu, aos onze anos com minha avó e aos doze anos, com outra amiga, já lidava melhor com essa separação.
Muitos são os conflitos que uma criança vivencia, a morte é um deles, mas nenhum é tão grande quanto os que dizem respeito a tabus que teimam em permanecer até os dias atuais, como a sexualidade, principalmente em meninas.  Aos nove anos me descobri sentindo algo diferente por um menino. Nunca uma pessoa havia falado que tal sentimento existia... Que sofrimento! E ansiedade, então... De tanto eu falar no garoto e ficar mais próximo dele, as outras crianças diziam que éramos namorados, mas eu nem sabia o que era “ser namorados”, só gostava de estar perto, nada mais. No entanto, que o coração disparava isso disparava. Eu percebia que esse sentimento era recíproco, pois ele também queria ficar perto de mim. Mas, isso duraria pouco, pois logo a família mudou-se para longe e nunca mais o vi. Esse foi meu primeiro amor! Pensei que não resistiria ao sofrimento e não tinha ninguém para desabafar. Imagine eu contando para um pai repressor que amava um menino da minha idade! "Era morte na certa". Dois anos mais tarde também aconteceu do mesmo jeito, sem nunca ter falado que ele era meu amor. São meus maiores segredos de infância!
Nesta época também aconteceram coisas muito estranhas comigo. Já havia me mudado para um bairro mais afastado do centro e lá também tinha brincadeira na rua. Muitas por sinal: brincava de polícia e ladrão, bandeirinha, garrafão (esse eu não gostava), chicotinho queimado, corre-cutia, queimada.  Bem nesta época que começaram meus conflitos internos. Eu tinha dúvidas que entendia só existir dentro da minha cabeça. Às vezes pensava estar ficando maluca e acabava tendo certeza disso quando ousava perguntar a um adulto ou colegas. Por muito me isolei e acabei formulando alguns tiques que somente mais tarde soube serem compulsivos obsessivos. Mas minha cabeça pensava demais e não tinham nem na família, nem na escola, pessoas que pudessem aliviar tantos pensamentos. Eu queria saber o porquê das coisas funcionarem do jeito que funcionavam, porque as coisas tinham o nome que tinham e não outro nome, e eu branca e minha colega negra, porque tinha cor para menino e cor para menina – talvez fosse só para arrumarmos a bagunça deles. Eu gostava de todas as cores. E porque eu tinha que arrumar se nunca meu irmão arrumava nada? E se meu irmão usava calças por que eu não podia usar? Por que nas minhas horas vagas do colégio, não podia brincar, nem ler - porque isso era vagabundagem – mas, meu irmão podia jogar bolinhas de gude, soltar pipas ou caçar passarinhos? E as brincadeiras então, meninos não podiam brincar - qual era o problema? E meninas também eram apartadas de carrinho de rolimã e jogos de botão, pião, pipa e bola de gude. Tão bom quando éramos bem pequenos, que não tinha muito essa diferença! Meus irmãos e eu adorávamos quando chovia e meu pai não estava em casa. A gente viajava de espaçonave construída de cobertas em cima da cama. Lá era tudo que queríamos que fosse e ninguém interferia, a menos que fosse a hora do pai chegar, hora da comida, do banho ou ir para o colégio.
          A despeito de tudo, ano passado, uma das atividades de Português Instrumental pedia para recordarmos das brincadeiras de infância. Olha, fiquei espantada em relacionar tantas brincadeiras, fui recordando aos poucos e as que eu não lembrava, pesquisei, e a cada uma dizia: eu brinquei dessa, e dessa, dessa também. Foram muitas... Que nostalgia! Fiz uma relação de lembranças agradáveis de um tesouro guardado só em minhas memórias.
Afinal, quem que sendo criança, não tem guardado na lembrança, mesmo de uma infância conturbada, algo de bom relacionado ao brinquedo preferido ainda que inventado por ele mesmo?
Finalizo com um breve recado às pessoas que lidam ou vão lidar um dia com criança: permita que de dentro dela possa sair imagens sólidas e de completo significado, sem que com isso fique podada e enclausurada no seu íntimo, os pensamentos. Rebata qualquer ideia discriminatória que possa incendiar o livre dom de brincar de uma criança. Ela deve voar em suas imaginações e criatividades sem interferência ou castração. A direção precisa se basear nos preceitos moral e ético, mas nunca deve agir no imaginário. Esse é de cada um, tem um único dono, é inviolável.


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