Juraci Reis
A segunda de quatro filhos:
dois meninos e duas meninas intercalados. Nasci em um ambiente simples, filha
de camponeses. Meus pais dois anos antes de meu nascimento deixaram a terra natal
onde viviam na roça, para uma cidadezinha também pequena, mas com um pouco mais
de recurso e emprego. Meu nascimento marcou pelo fato de ter nascido sozinha
com minha mãe, com o cordão enrolado no pescoço, enquanto minha tia e a avó
paterna corriam para não me ver nascendo e meu pai ia a busca da parteira a uns
dez quilômetros de casa, a pé. Minha tia questionada tempos depois, porque não
ficou perto, me disse certa vez: eu não, você tava toda enrolada, sei lá o que
podia acontecer! Me deu um nervoso!
Pequenina, ainda, vivi a
experiência de ter sido “raptada” pela litorina, uma espécie de carrinho nos
trilhos usado para manutenção da linha férrea. O condutor ao ver-me na linha
sem ninguém me pegou e começou a procurar de quem era o bebê. Desde pequena tive
fixação por retas e queria saber o que tinha depois. Também gostava de pular os
dormentes, deste modo cheguei a ir longe enquanto meus pais estavam numa
quermesse à beira da estrada de ferro. Deixei todos desesperados!
Minha infância se deu na
turbulenta época da tirania ditatorial, filha de pai muito severo, mas de uma
conduta ilibada, pude perceber o nervosismo estampado no rosto a cada vez que
chegava em casa. Nem eu, nem meu irmão podíamos sorrir ou chorar. Ele logo se
estressava. Na época tinha verdadeiro horror dele, mas depois quando já
percebia os porquês passei a entender melhor e aceitar tantas vezes de surras
sem precedentes. Meu pai trabalhava de dezesseis a vinte horas por dia, num
regime completamente escravista. Então quando ele estava em casa as
brincadeiras tinham que parar.
Meu irmão e eu brincávamos do
que tínhamos em mãos. Fazíamos cavalinho de pau e bonecos de frutas que caiam
dos pés, também brincávamos de lama e inventávamos muitas coisas. Só tinha eu e
ele, mais nada, nem televisão, nem telefone, nem brinquedos comprados. Ah!
Tinha um radinho de pilha, do qual ouvíamos as pessoas falarem e ficávamos
intrigados como cabiam ali dentro. E curiosos, sacudíamos e tentávamos abrir
até apanhar para aprender a não mexer em coisas de gente grande.
Minha mãe sempre dizia que eu
nunca fui malcriada, mas era pirracenta, se teimasse em ficar em um determinado
lugar, ali fazia xixi e se alguém me pegasse, voltava a deitar no mesmo lugar.
Aos dois anos recebi de presente uma boneca de verdade, que chorava, fazia xixi
e coco. Era minha irmãzinha, daí então perdi meu colo e ganhei
responsabilidade, pois tinha que “cuidar/brincar” com ela. Mas isso não me
incomodava, o que doía mesmo era o fato do carinho ser mais dela do que meu,
visto a necessidade de cuidados pela asma e fragilidade. E foi brincando com
ela que fui acidentada no rosto quando um pau bateu em mim enterrando pela boca
adentro, precisando de cirurgia. Lembro-me nesta época de como era divertido
correr com um pau na mão pela cerca de bambu, fazendo barulho para a cadela
correr atrás e jogarmos o pau. Foi nesta brincadeira que meu irmão jogou em
minha direção e da minha irmã, ambas sentadas no chão e esse pau bateu em meu
rosto. Como em nossas mãos qualquer pedaço de bambu virava um cavalo, um boi,
uma bicicleta ou uma carroça, assim, brincando, às vezes, acabávamos nos
machucando. Mas tudo vale a pena se é brincadeira e estamos felizes. Mas meu
irmão levou uma surra daquelas!
Neste mesmo ano, já aos quatro
de idade, ganhei minha primeira boneca. Ela era pequenina, lourinha, abria e
fechava os olhinhos e de louça. Essa é a lembrança mais bonita que tenho do meu
pai. Foi quando ele me entregou a boneca e mandou que eu fosse mostrar a uma
prima que era loura também, e era para dizer que a boneca era igual a ela.
Neste dia pude perceber que meu era MEU PAI, ele demostrou carinho e falou com
carinho, sem gritos ou repreensão. E era a mais linda das bonecas. Foi no
Natal, mais precisamente dia 25 de dezembro de 1965, de manhã, e o mais feliz
da minha primeira infância também. A imagem ficou em minha mente até hoje, com
todo o cenário e as pessoas, mas naquele momento só tinha eu e meu pai. Nunca
mais eu tive esse carinho dele. Os antigos achavam que se desse carinho ou
sorrisse e brincasse com a criança ela ficava sem vergonha. Ouvia muito a
frase: quem brinca com criança amanhece mijado! O mesmo ditado que era
utilizado com relação ao fogo.
Aos seis anos mudamos para o
centro da cidade e ficou um pouco mais fácil, pois não precisava andar tanto
para chegar ao hospital (único lugar que eu ia nessa cidade) ou quando íamos
embarcar para Massambará, lugar de meus avós maternos. Esse sim era um grande
passeio, esperado durante o ano todo. Lá podíamos correr e subir em árvores,
gritar, comer goiaba do pé, lá no alto; e andar de porteira. É, tinha uma
porteira grande a uns duzentos metros da casa e nós adorávamos andar nela.
Muito boa essa experiência. E se alguém nunca andou de porteira, é bom que
experimente, vão gostar!
Essa também foi a idade do
colégio. Êta sofrimento! Perdia minha família todos os dias, era essa a sensação que
sentia. E doía muito, mas não sabia o que era saudade, pois ninguém explicava
uma coisa tão complexa. Aliás, ninguém explicava nada para criança. Tudo, ou
melhor, nada era assunto de criança. Ah! Mas tem uma coisa boa na escola.
Era lá que eu brincava com outras crianças. Não dentro dela, nem na sala de
aula, que alias tinha até castigo físico. Mas do lado de fora. E chegava cedo,
só para brincar no beco de casas em frente a escola, enquanto espera o sino tocar. Minha escola
ficava no alto e se chamava "Escola José do Patrocínio". Embaixo era a rua onde vez
por outra passava um caminhão levando refugo para a fábrica de papel, que ficava
logo adiante, ou trazendo bobinas de papel já manufaturado. Entre a rua e a
escada da escola ficava uma vila de casas e lá sentávamos para brincar, ora de
três marias, ora de bafo-bafo e corda. A fila era na rua mesmo. Subíamos, e daí
acabava a brincadeira. Lá dentro não era lugar de brincar, a fila nem podia ser
torta, ninguém falava, mas na hora do recreio a gente podia. E nos esbaldávamos
na roda; mãe rica, mãe pobre; amarelinha e no passaralho (passará não passará).
Recordo-me que eram tantas coisas que eu queria aprender, mas não podia, tinha
que ser somente o que a escola ensinava! Entretanto, disso não queria saber. De
fato, tantas foram minhas dúvidas e interesses sem respostas que parei de
indagar, engoli minhas perguntas e muitas coisas nem quero mais saber. Agora
quero aprender outras e não ficar mais sem respostas, porque se uma pessoa não
me responde eu não ligo, pergunto a outra, ou vou eu mesma procurar a resposta
e pronto. Virei pesquisadora dos meus pensamentos.
Lembro-me da minha primeira
professora com muito carinho! Ela me ensinou a ler em três meses apenas. Da
terceira, da quarta e da quinta também, mas da segunda não. Essa era a bruxa
dos contos de fadas. E o que falava e fazia, feria muito.
Neste período, em minha cidade
não existia escola privada para as classes mais abastadas, eles tinham mesmo
que estudar com a ralé, sendo a mais próxima, longe para muitos. Desse modo,
estudavam ricos, pobres e aqueles muito pobres. Alguns tendo que andar
quilômetros enquanto outros chegavam de carango. Para mim não era tão difícil,
porque dos seis aos oito anos morei no centro da cidade ficando mais próximo
também da escola, cerca de três quilômetros de distância.
A diferença de tratamento
acentuava-se, era visível entre os que levavam merenda e os que não podiam e
tinham que comer a aveia da escola muitas vezes com perna de barata, e isso
virava motivo de chacota daqueles que tinham a mesa farta. Todas estas
lembranças me fizeram reportar para os momentos da saída e a chegada da escola,
a qual esperava também ansiosa para brincar na rua mais abaixo da minha casa e
ou acima dela, pois tinha outra rua na parte de cima, com um descampado.
Lembrei também da minha melhor amiga que tinha câncer na perna e mesmo
assim jogava futebol comigo, parando vez por outra por causa das dores e
fraqueza. Eu na minha inocência não sabia o que era e achava que era só levar
no médico que ela melhoraria. Quando da notícia de sua morte pouco tempo
depois, deixou-me profundamente abalada. Aliás, a minha relação com a morte foi
muito precoce, pois quando tinha cinco anos, também tive essa experiência e foi
chocante. Eu queria que a mãe da criança a tirasse de dentro da caixa por que
do jeito que a menina estava não iria conseguir respirar e aquela brincadeira
não era boa. Já fazia muito tempo que ela estava brincando daquele jeito e eu
não gostando nada daquela brincadeira. Levei um bom tempo para entender esse
fenômeno. Mas quando aconteceu, aos onze anos com minha avó e aos doze anos,
com outra amiga, já lidava melhor com essa separação.
Muitos são os conflitos que uma
criança vivencia, a morte é um deles, mas nenhum é tão grande quanto os que
dizem respeito a tabus que teimam em permanecer até os dias atuais, como a
sexualidade, principalmente em meninas. Aos nove anos me descobri
sentindo algo diferente por um menino. Nunca uma pessoa havia falado que tal
sentimento existia... Que sofrimento! E ansiedade, então... De tanto eu falar
no garoto e ficar mais próximo dele, as outras crianças diziam que éramos
namorados, mas eu nem sabia o que era “ser namorados”, só gostava de estar perto,
nada mais. No entanto, que o coração disparava isso disparava. Eu percebia que
esse sentimento era recíproco, pois ele também queria ficar perto de mim. Mas,
isso duraria pouco, pois logo a família mudou-se para longe e nunca mais o vi.
Esse foi meu primeiro amor! Pensei que não resistiria ao sofrimento e não tinha
ninguém para desabafar. Imagine eu contando para um pai repressor que amava um
menino da minha idade! "Era morte na certa". Dois anos mais tarde também
aconteceu do mesmo jeito, sem nunca ter falado que ele era meu amor. São meus
maiores segredos de infância!
Nesta época também aconteceram
coisas muito estranhas comigo. Já havia me mudado para um bairro mais afastado
do centro e lá também tinha brincadeira na rua. Muitas por sinal: brincava de polícia
e ladrão, bandeirinha, garrafão (esse eu não gostava), chicotinho queimado,
corre-cutia, queimada. Bem nesta época que começaram meus conflitos
internos. Eu tinha dúvidas que entendia só existir dentro da minha cabeça. Às
vezes pensava estar ficando maluca e acabava tendo certeza disso quando ousava
perguntar a um adulto ou colegas. Por muito me isolei e acabei formulando
alguns tiques que somente mais tarde soube serem compulsivos obsessivos. Mas
minha cabeça pensava demais e não tinham nem na família, nem na escola, pessoas
que pudessem aliviar tantos pensamentos. Eu queria saber o porquê das coisas
funcionarem do jeito que funcionavam, porque as coisas tinham o nome que tinham
e não outro nome, e eu branca e minha colega negra, porque tinha cor para
menino e cor para menina – talvez fosse só para arrumarmos a bagunça deles. Eu
gostava de todas as cores. E porque eu tinha que arrumar se nunca meu irmão
arrumava nada? E se meu irmão usava calças por que eu não podia usar? Por que
nas minhas horas vagas do colégio, não podia brincar, nem ler - porque isso era
vagabundagem – mas, meu irmão podia jogar bolinhas de gude, soltar pipas ou
caçar passarinhos? E as brincadeiras então, meninos não podiam brincar - qual
era o problema? E meninas também eram apartadas de carrinho de rolimã e jogos
de botão, pião, pipa e bola de gude. Tão bom quando éramos bem pequenos, que
não tinha muito essa diferença! Meus irmãos e eu adorávamos quando chovia e meu
pai não estava em casa. A gente viajava de espaçonave construída de cobertas em
cima da cama. Lá era tudo que queríamos que fosse e ninguém interferia, a menos
que fosse a hora do pai chegar, hora da comida, do banho ou ir para o colégio.
A despeito de tudo, ano passado, uma das atividades de Português Instrumental pedia para recordarmos das brincadeiras de infância. Olha, fiquei espantada em relacionar tantas brincadeiras, fui recordando aos poucos e as que eu não lembrava, pesquisei, e a cada uma dizia: eu brinquei dessa, e dessa, dessa também. Foram muitas... Que nostalgia! Fiz uma relação de lembranças agradáveis de um tesouro guardado só em minhas memórias.
A despeito de tudo, ano passado, uma das atividades de Português Instrumental pedia para recordarmos das brincadeiras de infância. Olha, fiquei espantada em relacionar tantas brincadeiras, fui recordando aos poucos e as que eu não lembrava, pesquisei, e a cada uma dizia: eu brinquei dessa, e dessa, dessa também. Foram muitas... Que nostalgia! Fiz uma relação de lembranças agradáveis de um tesouro guardado só em minhas memórias.
Afinal, quem que sendo criança,
não tem guardado na lembrança, mesmo de uma infância conturbada, algo de bom
relacionado ao brinquedo preferido ainda que inventado por ele mesmo?
Finalizo com um breve recado às
pessoas que lidam ou vão lidar um dia com criança: permita que de dentro dela
possa sair imagens sólidas e de completo significado, sem que com isso fique
podada e enclausurada no seu íntimo, os pensamentos. Rebata qualquer ideia
discriminatória que possa incendiar o livre dom de brincar de uma criança. Ela
deve voar em suas imaginações e criatividades sem interferência ou castração. A
direção precisa se basear nos preceitos moral e ético, mas nunca deve agir no
imaginário. Esse é de cada um, tem um único dono, é inviolável.
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