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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

POR QUE (NÃO) ENSINAR GRAMÁTICA NA ESCOLA



SÍRIO POSSENTI





POR QUE (NÃO) ENSINAR
GRAMÁTICA NA ESCOLA










DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
               (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)
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Possenti, Sírio
Por que (não) ensinar gramática na escola / Sírio Possenti — Campinas, SP :
Mercado de Letras : Associação de Leitura do Brasil, 1996. (Coleção Leituras
no Brasil)

ISBN  85 85725-24-9
1. Português - Gramática - Estudo e ensino  I. Título II. Série.

96-3880                                                                    CDD-469-507
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 Índice para catálogo sistemático
1. Gramática : Português : Estudo e ensino 469.507

COLEÇÃO LEITURAS NO BRASíL
Coordenação: Luiz Parcival Leme Britto
Conselho Editorial: Gláucia Mollo Pécora, Valdir Heitor Barzotto,
Maria José Nobrega, Wilmar da Rocha D'Angelis e Márcia Abreu

Capa: Vande Rotta Gomide
Copidesque: Nívia Maria Fernandes  
Revisão: Marília Marcello Braida

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6ª reimpressão
      2000

Proibida a reprodução desta obra
sem a autorização prévia dos Editores.




SUMÁRIO


APRESENTAÇÃO..............................    7

PRIMEIRA PARTE

INTRODUÇÃO.................................................................................... 15
O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR LINGUA PADRÃO...........................17
DAMOS AULAS DE QUE A QUEM?......................................................21
NÃO HÁ LÍNGUAS FÁCEIS OU DIFÍCEIS.............................................25
TODOS OS QUE FALAM SABEM FALAR..............................................28
NÃO EXISTEM LÍNGUAS UNIFORMES................................................33
NÃO EXISTEM LÍNGUAS IMUTÁVEIS..................................................37
FALAMOS MAIS CORRETAMENTE DO QUE PENSAMOS.....................41
LÍNGUA NÃO SE ENSINA, APRENDE-SE.............................................45
SABEMOS O QUE OS ALUNOS AINDA NÃO SABEM?..........................49
ENSINAR LÍNGUA OU ENSINAR GRAMÁTICA ?...................................53

SEGUNDA PARTE

INTRODUÇÃO.....................................................................................59
CONCEITOS DE GRAMÁTICA..............................................................63
GRAMÁTICAS NORMATIVAS...............................................................64
GRAMÁTICAS DESCRITIVAS...............................................................65
GRAMÁTICAS INTERNALIZADAS.........................................................69
REGRAS..............................................................................................73
LÍNGUA...............................................................................................74
ERRO..................................................................................................78
ESBOÇO PRÁTICO..............................................................................83





APRESENTAÇÃO

Este livro tem basicamente duas origens, ambas um pouco antigas, e sua estrutura as reflete ainda. Ele vem de dois textos menores que, por sua vez, resultaram de pequenos desafios propostos a mim por outros pesquisadores. Os dois desafios têm mais ou menos a mesma data, ou, é o que importa, a mesma datação intelectual e ideológica. Não há, entre um e outro, mudança de posição de minha parte, no que se refere aos temas em questão. Aliás, minha posição em relação a esses temas é mais ou menos a mesma há quinze anos, e é exatamente por isso que decidi transformar aqueles dois textos em livro.
Acho que foi em 1982. No Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, como decorrência da criação do curso de Letras, isto é, do ingresso de alunos que seriam por hipótese professores de Português nas escolas de primeiro e/ou segundo graus (até então só funcionava no Departamento que deu origem ao Instituto um bacharelado em linguística), veio à baiIa a questão da necessidade ou não de haver, no currículo de letras, disciplinas de ensino de gramática normativa. Até então, no bacharelado em linguística, e no currículo qne o curso de letras herdava daquele bacharelado, elas não existiam. Supu­nha-se, por um lado, que os alunos já tinham estudado suficientemente as gramáti- cas tradicionais, e era chegada a hora de eles aprenderem a analisar fatos de língua segundo outras teorias, mais sofisticadas. Por outro lado, muitos dos professores do Departamento de Linguística estávamos convencidos, já, de que ensinar língua e ensinar gramática são duas coisas diferen­tes. E achávamos que nosso trabalho era formar professores que ensinassem língua, e não professores de gramática. Além disso, achávamos que ensinar mais gramática tradicional era de certa forma inútil, dado que até nossos privilegiados alunos ainda achavam que deviam ter aulas da matéria, após cerca de dez anos de estudos! Alguns alunos entendiam a questão da mesma forma. Outros insistiam que não sabiam gramática e que deveriam aprendê-la para poder ensiná-la nas escolas. Por essas duas razões, tal conteúdo deveria ser contemplado no currículo. Houve seminários sobre a questão, com alunos e professores participando de discussões (às vezes, bate-bocas) bastante animadas.
Um dia, num encontro casual, o professor Roberto Schwartz me perguntou em que tipo de discussão estávamos metidos, afinal, no caso do ensino de gramática. Queria saber como os linguistas viam essa história do padrão linguístico e da gramática, inclusive porque, a seu ver, percebia-se a falta de um conhecimento mínimo de tais questões nos trabalhos que os alunos escreviam sobre textos literários. Tentei dizer-lhe, em poucas palavras, o que alguns de nós pensávamos e dizíamos, entre nós e nos seminários. Ele me propôs, então, que escrevesse um texto "inteligente" sobre a questão. Sugeriu-me até o título, "Gramática e política". Disse-me que, se o texto ficasse bom, ele tentaria fazê-lo passar no Conselho Editorial da revista Novos Estudos Cebrap. Suponho que ele tenha gostado, pois o texto saiu naquela revista, no volume 2, n° 3, de 1983. Cerca de um ano depois, ao organizar seu livro O texio na sala de aula, J. W. Geraldi incluiu "Gramática e política".   
Passado mais um ano, em reuniões com a equipe da CENP (um órgão ligado à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo) para negociar a participação de alguns professo­res do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem no Projeto IPÊ, um membro daquela equipe decla­rou que o texto sobre gramática poderia ser algo como o meu "Gramática e política", mas numa linguagem um pouco mais acessível aos professores da rede. Rodolfo Ilari e eu, então, escrevemos essa nova versão, que foi publicada pela secretaria da Educação do Estado de São Paulo, com o título de Português e ensino de gramática, em 1985.
Acho que foi em I984, quem sabe em 1983. Um dia, o professor Mercer, do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná, convidou-me para participar de um ciclo de palestras que ele coordenava, em Curitiba, sobre linguística e ensino de português. Disse-me ao telefone que, em primeiro lugar, esperava que eu aceitasse e, em segundo, que eu fosse a Curitiba para dizer que não havia nenhuma relação entre as duas coisas. Eu lhe disse que aceitava e que ia a Curitiba para dizer que havia uma relação importante entre as duas coisas, mas, de qualquer forma, eu esperava surpreendê-lo com meu discurso. É que eu imaginava, já, como resultado de algumas leituras e muitas conversas com colegas, como consequência de debates relativamente numerosos com professores de se­gundo grau e de faculdades do interior, e também, relevantemente, de uma posição política clara (modestamente, ainda penso isso) em relação à questão, que as principais contribuições da linguística para o ensino da língua não têm muito a ver com a introdução de gramáticas melhores na escola (embora isso seja eventualmente de enorme interesse), mas, fundamentalmente, com a colocação em cena de atitudes diversas dos professores em relação ao que sejam uma língua e seu processo de aprendizado (ou aquisição). Basicamente, tratava-se de eliminar preconceitos e de redizer algumas coisas óbvias sobre o funcionamento real da linguagem na vida real dos falantes, insinuando que esse uso real é o que deve ser priorizado na sala de aula. Não sei se consegui surpreender o professor Mercer ou qualquer outra pessoa. O que fiz foi extrair das principais correntes de estudos de linguagem, que eu conhecia de algum modo, um conjunto de enunciados resumidores (quase slogans) e atitudes pedagógicas correspondentes. Um ano depois, mais ou menos, fui convidado a participar de uma mesa redon­da num Seminário do Grupo de Estudos Linguis- ticos do Estado de São Paulo (GEL), e, para a ocasião, escrevi um texto que chamei de "Para um novo perfil do professor de português". Nesse texto, eu falava de cinco princípios indispensáveis para que o ensino de língua materna fosse bem sucedido. Na verda­de, eu queria dizer que eram coisas que todos os alunos de letras deveriam aprender nas universidades, e que isso era bastante fácil de fazer. Bastava ler uns dez artigos bem escolhidos. Falei muito sobre isso, nos anos subsequentes, para plateias diversas, e os cinco princípios acabaram se transformando em dez. Uma espécie de decálogo do professor de português, que, aliás, Giraldi incluiu em sua nova versão de O texto na sala de aula (São Paulo, Ática).
Pois bem, esse é o desenvolvimento desses dois textos antigos, apresentados na ordem inversa da apresentação feita aqui de sua história. Tal desenvolvimento se deve crn grande parte ao fato de que fui arranjando argumentos para defender tais princípios em numerosas apresentações e discussões que já fiz em vários lugares e para variadas plateias. Eu precisava convencer os outros e, às vezes, me defender deles.
Fica implícito, assim, que este livro não trata de proble­mas de ordem textual. Mas, de fato, acho que é nesse "nível", o do texto, que residem os principais problemas escolares, na disciplina dedicada ao ensino de língua materna. Aqui, minha contribuição ao desenvolvimento das capacidades de domínio do texto por parte dos alunos é apenas indireta: se diminuir na escola o espaço da gramática, poderá aumentar automaticamente o do texto. Além do mais, parece que no "nível" da textualidade as regras são menos claras ou gerais; pelo menos, seu estudo está ainda menos desenvolvido, embora já tenhamos boa e numerosa produção sobre o tema. Mas, não o tomarei aqui como objeto.
Na primeira parte, aquelas dez teses básicas são apre­sentadas e relativamente justificadas. Na segunda parte, estão expostos os conceitos de gramática relevantes para uma pro­posta de ensino, e seu lugar na escola é, tentativamente, dese­nhado. Quem conhece o texto como Ilari e eu o publicamos pela CENP verificará que algumas passagens permaneceram praticamente como estavam. Espero que ele ainda acredite no que escrevemos há dez anos.
Qualquer leitor poderá ver que se trata de um livro de divulgação. Como disse acima, trata-se de coisas velhas, ób­vias, elementares. Sinto-me à vontade para publicá-las apenas porque percebo, quando falo sobre esses temas, que, para muitos pessoas, o que aqui se poderá ler é, ao mesmo tempo, de alguma forma, novo e, além disso, de interesse.

PRIMEIRA PARTE

INTRODUÇÃO

A primeira parte deste livro apresenta um conjunto de teses correntes em linguística, seguidas de pequenas justifi­cativas. Não se trata de aumentar o conhecimento técnico de ninguém a respeito do português. Trata-se de um conjunto de princípios, um tanto díspares entre si (as tarefas de ensino exigem que se compatibilizem conhecimentos díspares), des­tinado mais a provocar reflexão do que a aumentar o estoque de saberes. Tenho a convicção de que, se o conhecimento técnico de um campo é fundamental na maior parte das especialidades, talvez o mesmo não valha (pelo menos da mesma forma) para o professor de língua materna. Mais que o saber técnico, um conjunto de atitudes derivadas dos sabe­res acumulados talvez resulte em benefícios maiores, por razões que, espero, ficarão claras abaixo. Inclusive porque, a rigor, sem estas atitudes, sequer seria possível um conheci­mento de tipo científico, isto é, um aumento de saber técnico, quando se trata de linguagem. É que este conhecimento também exige rupturas com princípios que fundamentam o tipo de saber anteriormente aceito.
Uma decisão que considero importante, no domínio do ensino de língua materna, é que não se façam experiências. Sou absolutamente contrário a transformar alunos em objeto de experimentos com teorias novas. É que, se o experimento fracassa, não se de desperdiçam amostras de materiais, mas  de pedaços de vidas, pates de projetos dos alunos, às vezes vidas e projetos inteiros. Por isso, as teses que exporei aqui são todas óbvias. Nenhuma delas é recente, inclusive. Trata-se de aquisições bastante sólidas da linguística deste século (até do anterior, às vezes). Se elas ainda precisam ser ditas é porque, por razões que seria interessante explicitar, elas não são difundidas. De fato, não há, por exemplo, divulgação de descobertas "científicas" no domínio das línguas. Ou se divulgam curiosidades anedóticas ou se repetem sempre ape­nas as teses conservadoras e normativas.
Frequentemente, pesquisadores são chamados para falar a professores, na esperança de que aqueles apresentem a estes um programa de ensino que funcione. Em certas circunstâncias, espera-se que tal programa funcione sem qualquer outra mu­dança na escola e nos professores. Espera-se que os especialistas tragam propostas "práticas". Em geral, um pesquisador não fornece tais programas. Nem adiantaria fazê-lo. É que, para que o ensino mude, não basta remendar alguns aspectos. É necessá­rio uma revolução. No caso específico do ensino de português, nada será resolvido se não mudar a concepção de língua e de ensino de língua na escola (o que já acontece em muitos lugares, embora às vezes haja discursos novos e uma prática antiga).
Seguem-se, pois, teses básicas em relação ao problema do ensino de língua materna. Se as teses fossem transformadas em práticas, muitas das atividades atuais seriam substituídas. Se as teses expressarem verdades, sua aplicação resultará em considerável melhoria do ensino.

O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR
LÍNGUA PADRÃO
É importante que este tópico fique claro, e esteja na memória do leitor, quando estiver eventualmente achando estranha alguma das teses seguintes. Talvez deva repetir que adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatameme, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico. A tese de que não se deve ensinar ou exigir o domínio do dialeto padrão dos alunos que conhecem e usam dialetos não padrões baseia-se em parte no preconceito se­gundo o qual seria difícil aprender o padrão. Isto é falso, tanto do ponto de vista da capacidade dos falantes quanto do grau de complexidade de um dialeto padrão. As razões pelas quais não se aprende, ou se aprende mas não se usa um dialeto padrão, são de outra ordem, e têm a ver em grande parte com os valores sociais dominantes e um pouco com estratégias escolares discutíveis. Vou expandir um pouco e justificar as afirmações acima. Antes, preciso dizer que considero que estamos todos de acordo sobre um ponto: que o problema do ensino do padrão só se põe de forma grave quando se trata do ensino do padrão a quem não o fala usualmente, isto é, a questão é particularmente grave em especial para alunos das classes populares, por mais que também haja alguns problemas decorrentes das diferenças entre fala e escri­ta, qualquer que seja o dialeto (mas, insisto sobre a hipótese de que, provavelmente, tais problemas sejam mais de tipo textual do que de tipo gramatical).
Como toda a boa tese, a que estou defendendo aqui é afirmada contra alguma outra, real ou hipotética, às vezes atribuída aos linguistas. Dentre as que defenderiam que a  função da escola é ensinar  português padrão, aquelas que  vale a pena comentar são basicamente duas. Uma é de natureza político-cultural. Outra, de natureza cognitiva.
A tese de natureza político-cultural diz basicamente que é uma violência, ou uma injustiça, impor a um grupo social os valores de outro grupo. Ela valeria tanto para guiar as relações entre brancos e índios quanto para guiar as rela­ções entre — para simplificar um pouco — pobres e ricos, privilegiados e "descamisados". Dado que a chamada língua padrão é de fato o dialeto dos grupos sociais mais favoreci­dos, tornar seu ensino obrigatório para os grupos sociais menos favorecidos, como se fosse o único dialeto válido, seria uma violência cultural. Isso porque, juntamente com as formas linguísticas (com a sintaxe, a morfologia, a pronúncia, a escrita), também seriam impostos os valores culturais liga­dos às formas ditas cultas de falar e escrever, o que implicaria em destruir ou diminuir valores popu1ares. O equívoco, aqui, parece-me, é o de não perceber que os menos favorecidos socialmente só têm a ganhar com o domínio de outra forma de falar e escrever. Desde que se aceite que a mesma língua possa servir a mais de uma ideologia, a mais de uma função, o que parece hoje evidente.
Isso poderia parecer óbvio, mas é aqui que começa a funcionar o outro equívoco, o de natureza cognitiva. Ele consiste em imaginar que cada falante ou cada grupo de falantes só pode aprender e falar um dialeto (ou uma língua). Dito de outra maneira: a defesa dos valores "populares" suporia que o povo só fala formas populares, e que elas são totalmente distintas das formas utilizadas pelos grupos domi­nantes. O que vale para formas linguísticas valeria para outras formas de manifestação cultural. A hipótese supõe também que o aprendizado de uma língua ou de um dialeto é uma tarefa difícil, ou, pelo menos, difícil para certos grupos ou para certas pessoas. Ora, todas as evidências vão no sentido contrário. Qualquer pessoa, principalmente se for criança, aprende com velocidade muito grande outras formas de falar, sejam elas outros dialetos ou outras línguas, desde que expostas consistentemente a elas. Em resumo, aprender outro dialeto é relativamente fácil. Portanto, nenhuma das razões para
não ensinar o dialeto padrão na escola têm alguma base razoável.
Em que consistiria o domínio do português padrão? Do ponto de vista da escola, trata-se em especial (embora não só) da aquisição de determinado grau de domínio da escrita e da leitura. É evidentemente difícil fixar os limites mínimos satisfatórios que os alunos deveriam poder atingir. Mas, parece razoável imaginar, como projeto, que a escola se proponha como objetivo que os alunos, aos 15 anos de vida e 8 de escola, escrevam, sem traumas, diversos tipos de texto (narrativas, textos argumentativos, textos informativos, atas, cartas de vários tipos etc.; pode-se excluir a produção de textos literários dos objetivos da escola, já que literatos certamente não se fazem nos bancos escolares; o máximo que
se pode esperar é que eles aí não se percam) e leiam produti­vamente textos também variados: textos jornalísticos, como colunas de economia, política, educação, textos de divulga­ção científica em vários campos, textos técnicos (aí incluído o manual de declaração do imposto de renda, por exemplo) e, obviamente, e com muito destaque, literatura. No final do segundo grau, deveriam conhecer a literatura contemporânea e os principais clássicos da língua. Seria bom que conheces­sem também, nesse nível de formação escolar, pelo menos alguns dos principais clássicos da literatura universal, pelo menos nas edições condensadas.
Para que as posições aqui defendidas façam sentido, é preciso antes ler claro que tal objetivo certamente não é atingido atuaImente, como regra, São relativamente poucos os alunos egressos do segundo grau que executam esses dois tipos de atividade com frequência e naturalidade. Mas, gos­taria de deixar claro que não se está propondo um projeto inexequível, nem novo. É apenas o óbvio. O que proponho é que o óbvio seja efetivamente realizado. Uma das medidas para que esse grau de utilização efetiva da língua escrita possa ser atingido é escrever e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português. Ler e escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino da língua. Portanto, seu lugar privilegiado, embora não exclusi­vo, é a própria sala de aula.
As razões pelas quais — às vezes — a escola fracassa na consecução desse objetivo são variadas. Como disse aci­ma, as razões podem ser de ordem metodológica (pedagógi­ca) ou decorrentes de valores sociais complexos. Alguns desses empecilhos podem ser destruídos na própria escola.
Outros, não. Alguns dos problemas que levam ao fracasso têm a ver com a forma como se concebem a função e as estratégias do ensino de língua. A única opção de uma escola comprometida com melhoria da qualidade do ensino está entre ensinar ou deixar aprender... Qualquer outra implica em conformar-se com o fracasso ou, pior, em atribuí-lo exclusi­vamente aos alunos.


DAMOS AULAS DE QUE A QUEM?

Pode-se discutir o grau de clareza necessário para a execução de projetos. Por exemplo, é certamente possível trabalhar bem em certos pontos de uma "linha de produção" sem conhecer o projeto global ou mesmo o produto final. Mas, é duvidoso que isso possa ser feito adequadamente quando se trata de escola e de alunos. Para que um projeto de ensino de língua seja bem sucedido, uma condição deve necessariamente ser preenchida, e com urgência: que haja uma concepção clara do que seja uma língua e do que seja uma criança (na verdade, um ser humano, de maneira geral). A melhor maneira de obter tal concepção sem ter que passar por uma vasta literatura de linguística e de psicologia é ler meia dúzia de textos escolhidos. Se bem escolhidos e bem lidos, eles podem tomar-nos bons observadores dos fatos, em especial do que as crianças fazem diariamente ao nosso redor. Poderemos pensar o que quisermos das crianças, mas provavelmente não estaremos autorizados a dizer que elas, mesmo as menos dotadas do ponto de vista das condições materiais, são incapazes de aprender línguas. Todos podemos ver diariamente que as crianças são bem sucedidas no aprendizado das regras necessárias para falar. A maior evidência disso é que falam. Se as línguas são sistemas complexos e as crianças as aprendem, de uma coisa podemos ter certeza: elas não são incapazes. Podemos duvidar que as lín­guas sejam sistemas complexos? Quem tiver tal dúvida, que tente estudar qualquer uma delas, e verá como qualquer idéia contrária desaparecerá. Enquanto estes dois pontos não ficarem claros, continuaremos reprovando na escola exatamente aque­les que a sociedade já reprovou, enchendo as salas especiais e curtindo o fracasso dos nossos projetos.
Podemos utilizar alguns testes para saber que tipo de concepção temos do que seja uma língua. Por exemplo, quando o ex-ministro Magri produziu a forma "imexível", que se tornou conhecida e foi muito comentada, o que é que nós pensamos? Que ele era um ignorante porque disse uma palavra que não está no dicionário? Ou que pelo menos em uma coisa ele era bom? Convenhamos, ele errou muito nas suas funções de ministro. Na verdade, só mostrou virtudes no campo da derivação morfológica... De fato, a palavra "imexível" se deriva de "mexer" pelos mesmos caminhos pelos quais "into­cável" se deriva de "tocar", por exemplo. Ora, sendo "intocá­vel" indiscutivelmente uma palavra, deve-se concluir que a façanha de Magri consistia em seguir regras, e não em violá-las. Se uma palavra não está no dicionário, podemos pensar duas coisas: que a palavra não existe na língua ou que o dicionário tem deficiências. O fato de desconfiarmos de um dicionário revela, em princípio, uma visão mais adequada de língua do que o fato de desconfiarmos de (ou não percebermos) um processo gramatical produtivo. Se nossas perguntas são sempre sobre o que é certo ou errado, e se nossas respostas a essas perguntas são sempre e apenas baseadas em dicionários e gramáticas, isso pode revelar uma concepção problemática do que seja realmente uma língua, tal como ela existe no mundo real, isto é, na sociedade complexa em que é falada. Os dicio­nários e as gramáticas são bons lugares para conhecer aspectos da língua, mas não são os únicos e podem ate não ser os melhores. (Nos próximos capítulos, comentarei aspectos rele­vantes para uma concepção adequada de língua, tanto do ponto de vista de critérios mais científicos quanto do seu ensino.)
A outra questão importante é a concepção do que seja um humano. Claro que se poderiam formular muitas per­guntas sobre numerosos aspectos ou características do se­res humanos. Mas, do ponto de vista do ensino (e do aprendizado) é apenas uma a questão verdadeiramente importante: como nós pensamos que os homens aprendem? Como os animais, ou de maneira diferente e específica? Uma forma mais sofisticada de formular esta questão tal­vez seja supor que nem tudo se aprende da mesma forma. Então, a pergunta seria: será que tudo o que os seres humanos aprendem é resultado das mesmas estratégias? Por exemplo, os processos utilizados para transformar al­guém num bom goleiro, num bom cobrador de lances livres no basquete, ou para aprender a comer com faca e garfo sem atrapalhar-se são os meamos processos pelos quais aprendemos matemática e, principalmente, línguas? É pro­vavelmente verdade que é necessário repetir exaustiva­mente certos movimentos para criar reflexos apurados num goleiro ou para ser um bom datilógrafo. Ou seja, há tipos de comportamentos que os seres humanos certamente ad­quirem de formas semelhantes às utilizadas pelos animais para adquirir certos comportamentos condicionados (reali­zar certas evoluções num circo, por exemplo). Mas há tipos de "comportamento" que os seres humanos adquirem de forma que poderíamos chamar de criativa, isto é, que não dependem de repetições numerosas, mas de hipóteses constantemente propostas e testadas pelo próprio aprendiz.
Ter uma concepção clara sobre os processos de apren­dizagem pode ditar o comportamento diário do professor de língua em sala de aula. Por exemplo, se ele dá aos alunos exercícios repetitivos (longas cópias, exercícios estruturais, preenchimento de espaços vazios etc.), é porque está seguindo (saiba ou não — daí a importância de ter ideias claras!) uma concepção de aquisição de conhecimento segundo a qual não há diferenças significativas entre os homens e os animais em nenhum domínio de aprendizagem ou de comportamento.
Certamente, esta é a concepção dominante no Brasil. Mas, há fortes evidências de que é mais correto, o que seria também mais produtivo para a escola, aceitar que os homens aprendem certos tipos de coisas — em especial, línguas — sem treinamento. O que não quer dizer sem condições adequadas, dentre as quais, eventualmente, muito esforço e trabalho. Pen­se-se, por exemplo, na velocidade com que uma criança de três anos que tenha ido morar em um país estrangeiro aprende a língua local, apenas em contato com outras crianças, sem sequer ter tempo para ser treinada.
Disse acima que basta observar cuidadosamente o quer as crianças fazem ao nosso redor para nos convencermos de que são criativas. Por exemplo: se realmente as ouvíssemos, jamais ima­ginaríamos que é necessário ensinar uma criança a fazer frases, porque veríamos que já sabem fazê-las, e muito menos pensaría­mos que só podemos lhes apresentar frases bem "simples", por que as ouviríamos produzindo numerosas frases bem mais com­plexas do que as que lhes oferecemos nos primeiros anos de escola, nos primeiros livros e nos primeiros exercícios.

NÃO HÁ LÍNGUAS FÁCEIS OU DIFÍCEIS

Uma das mais interessantes descobertas, do ponto de vista europeu, produzida pelas análises de numerosas línguas indígenas, isto é, línguas faladas nos continentes que os euro­peus "descobriram", é que não é verdade que existem línguas simplificadas, ou, para utilizar um termo mais corrente, primi­tivas. Era um lugar comum (pode ser que o seja ainda hoje, para muitos, por desinformaçao) imaginar que a civilização euro­péia constituía progresso, melhoria, desenvolvimento, avanço. O ponto máximo até então atingido pela humanidade. Mesmo no século XIX, muito depois, portanto, do Iluminismo [no interior do qual se gestou essa ideia de progresso), ainda se imaginava, por influência das teorias correntes sobre a evolu­ção, que as civilizações e as sociedades estavam submetidas a uma evolução similar à das espécies (talvez isso seja mais lamarckismo, mas, deixemos os detalhes de lado, por enquan­to). Parecia óbvio pensar o seguinte: há povos atrasados, que mal conhecem o fogo e o tacape, que nem agricultores são. Parecia lógico pensar que, se são primitivos no que se refere a sua sobrevivência e a suas artes, deve ser porque ainda não desenvolveram "totalmente" as capacidades típicas dos seres humanos, vale dizer, a razão, a inteligência. Logo, devem falar uma língua primitiva, mais próxima dos grunhidos dos gorilas do que da sofisticação de uma língua como o gregos o latim, o inglês, o francês, o alemão. Ora, esse raciocínio só foi possível como decorrência do desconhecimento das estruturas internas dessas línguas. Quando os próprios europeus analisaram as línguas indígenas, isto é, quando missionários e linguistas descreveram as gramáticas de tais línguas, fizeram descobertas surpreendentes (para os preconceituosos). Descobriram que línguas consideradas primitivas podem ser classificadas ao lado de línguas ditas civilizadas (segundo Mattoso Câmara, Hill afirma a existência de semelhanças estruturais entre o latim e o esquimó, Nida mostra que os processos morfológicos tornam "aparentadas" línguas como o latim, o sânscrito e o grego com o nwátal, do México e o haussá, da África, por exemplo).
Afirmar que há línguas primitivas é um equívoco equi­valente a afirmar que a Lua é um planeta, que o Sol gira ao redor dia Terra, que as estrelas estão fixas em uma abóbada. Tais equívocos foram correntes, mas hoje há um argumenlo forte contra eles: o conhecimento científico. Da mesma manei­ra, hoje sabemos que todas as línguas são estruturas de igual complexidade. Isto significa que não há línguas simples e línguas complexas, primitivas e desenvolvidas. O que há são línguas diferentes. Uma análise de qualquer aspecto de qualquer das línguas consideradas primitivas revelará que as razões que levam a este tipo de juízo não passam de preconceito e/ou de ignorância.  Não é decente, neste domínio, basear-se no preconceito ou no "ouvi dizer". Hoje, a bibliografia sobre línguas do mundo á abundante: qualquer pessoa interessada pode descobrir que, há muito tempo, os estudiosos mostraram que é ridícula a ideia de que há línguas primitivas, só porque são faladas por povos pouco cultos, segundo nossos critérios — por exemplo, nào escrevem, não moram em prédios de apartamemos, não têm armas sofisticadas... De certa forma, essa revolução copernicana, no domínio das línguas, ainda não se tornou conhecida do grande público...
A tese que rejeita a oposição primitivo versus civilizado é forte também em antropologia. Os estudiosos das chamadas comunidades primitivas mostraram convincentemente que elas são frequentemente diferentes das nossas, o que é mais ou menos óbvio, mas que é impossível mostrar que sejam simples, qualquer que seja o sentido dessa palavra. Isto é, o conjunto de leis e regras que governam seu funcionamento está longa de ser banal. Nada mais falso do que imaginar que sociedades "primitivas" têm organização mais semelhante ao de uma comunidade de animais que ao de uma sociedade civilizada. Mas, esta ainda é uma visão que perdura.
A tese de que nao há línguas primitivas e civilizadas, ou seja, línguas simples e línguas complexas, tem uma aplicação didática imediata. É comum que alunos e ex-alunos justifiquem seu mau desempenho escolar no domínio da língua com uma desculpa do tipo: "Também, que língua difícil o português! Como tem regras! E as exceções, então!" Ora, esse tipo de afirmação é equivocada. Não resiste à menor análise. Nenhuma língua tem um número de regras substancialmente diverso do de outra. O português é uma língua tão fácil que qualquer criança que nasce no Brasil (e em alguns outros lugares) a aprende em dois ou três anos. E é tão difícil que os gramáticos e linguistas não conseguem explicá-la na sua totalidade. E o mesmo vale para o chinês, o guarani, o alemão, o bantu, o japonês etc. A questão é exatamente igual em cada país ou para cada língua. (Não se deve confundir capacidade ou dificuldade de aprender uma língua com a de aprender a escrever segundo determinado sistema de escrita...)
A ideia de que não há línguas piores do que outras pode talvez ser aceita com relativa facilidade, até porque não nos afeta diretamente. Ou, pelo menos, não nos afeta gravemente, exceto pela afirmação corrente sobre as dificuldades escolares que oferece. O mais problemático é analisar os dialetos da mesma forma. Mas, na verdade, o que vale na comparação entre línguas vale na comparação entre dialetos de uma mesma língua. Dialetos populares e dialeios padrões (ou cultos) se distinguem em vários aspectos, mas não pela complexidade das respectivas gramáticas. Ou seja, não há dialetos mais simples do que outros. O que há, também neste caso, são diferenças (aliás, nem tantas quanto às vezes se pensa). As diferenças mais importantes entre os dialetos estão menos ligadas à variação dos recursos gramaticais e mais à avaliação social que uma sociedade faz dos dialetos. Tal avaliação passa, em geral, pelo valor atribuído pela sociedade aos usuários típicos de cada dialeto. Ou seja: quanto menos valor (isto é, prestígio) têm os falantes na escala social,  menos valor tem o dialeto que falam.
Se não há línguas mais simples do que outras, se não há dialetos mais complexos nem mais simplificados do que ou­tros, as conclusões óbvias são: a) não é mais difícil aprender um dialeto do que aprender outro; b) quem conhece um dialeto não é nem mais capaz nem mais incapaz do que quem conhece outro. Quem não acredita nessas conclusões poderia tentar: a) estudar um dos dialetos chamados simples, para verificar se redmente ele o é; b) analisar sem preconceito o desempenho de pessoas diferentes, cada uma em seu dialeto, para verificar se é verdade que há quem não saiba falar direito.
TODOS OS QUE FALAM SABEM FALAR

Pode ser que seja verdade que os sentidos nos enga­nam. Esta é uma antiga questão filosófica. O exemplo mais invocado para mostrar como o que vemos pode não estar acontecendo é a velha história de o Sol girar ao redor da Terra. É o que vemos, mas não é o que acontece. Nosso posto de observação é ruim, e assim nos enganamos. Se pudéssemos ver de fora, provavelmente não nos enganaríamos. Mas, se, em relação ao Sol e à Terra, acreditamos durante muito tempo que o que víamos era verdade, em relação às línguas nunca acreditamos muito no que ouvimos. Os grupos que falam uma língua ou um dialeto em geral julgam a fala dos outros a partir da sua e acabam considerando que a diferença é um defeito ou um erro. Daí pensarmos, em geral, que os outros não sabem falar. Ou, ainda mais gravemente, acabarmos conven­cidos de que nós também não sabemos falar, se falamos de forma um pouco diferente daqueles que são para nós os modelos de comportamento linguístico. O preconceito é mais grave e profundo no que se refere a variedades de uma mesma língua do que na comparação de uma língua com outras. As razões são históricas, culturais e sociais. Aceitamos que os outros (os que falam outra língua) falem diferente. Mas, não aceitamos pacificamente que os que falam ou deveriam falar a mesma língua falem de maneira diferente.
Ora, se abríssemos os ouvidos, se encarássemos os fatos, eles nos mostrariam uma coisa óbvia: que todos os que falam sabem falar. Pode ser que falem de formas um pouco peculiares, que certas características do seu modo de falar nos pareçam desagradáveis ou engraçadas. Mas isso não impede que seja verdade que sabem falar. As crianças, a partir dos três anos (arredondemos, para simplificar), falam durante muitas horas por dia. Ora, não poderiam fazer isso se não soubessem fazê-lo. As crianças brasileiras falam o dia todo em português (e não em chinês, alemão etc.). Logo, sabem português. Os brasileiros cuja situação social e econômica não lhes permitiu que estudassem muitos anos (às vezes, nenhum) falam o tempo todo. É claro, falarão como se fala nos lugares em que eles nascem e vivem, e não como se fala em outros lugares ou entre outro tipo de gente. Logo, falam seus dialetos. Logo, sabem falar.
Qualquer um poderia objetar que todos falam, mas erra­do. Por ora, diria que a definição de erro é um problema complexo, e não apenas uma questão de norma gramatical da língua escrita. Para antecipar um pouco uma reflexão que deverá ser feita adiante, diria que os erros que condenamos só são erros se o critério de avaliação for externo à língua ou ao dialeto, ou seja, se o critério for social. Mas, se adotássemos esse critério para todos os casos, deveríamos também concluir que são erros todos os modos diferentes de falar, mesmo os que são típicos de outras línguas.
Saber falar significa saber uma língua. Saber uma língua significa saber uma gramática. (Oportunamente, esclarecere­mos melhor alguns conceitos de gramática). Saber uma gramá­tica não significa saber de cor algumas negras que se aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e sintáticas. Mais profundo do que esse conhecimento é o conhecimento (intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efeti­vamente a língua. As crianças, por exemplo, não estudam sintaxe de colocação antes de ir à escola, mas, sempre que falam sequências que envolvem, digamos, um artigo e um nome, dizem o artigo antes e o nome depois (isto é, nunca se ouve uma criança dizer "casa a", mas sempre se ouvem crianças dizerem "a casa" (pode ser até que elas digam "as casa", dependendo do dialeto que falam; pode ser que não gostemos disso; mas, temos que reconhecer que, mesmo nesse dialeto do qual eventualmente não gostamos, nunca se dirá nem "casa as", nem "a casas", o que não é pouca coisa).
Resumidamente, poda-se dizer que saber uma gramática é saber dizer e saber entender frases. Quem diz e entende frases faz isso porque tem um domínio da estrutura da língua. Mesmo diante de uma frase "incompleta", por exemplo, o falante é capaz de fazer hipóteses de interpretação.
Considere-se o seguinte exemplo, uma piada de um programa de TV: Uma personagem diz: — "Sua mãe está aí. Você não vai receber?" A outra responde: — "Receber por quê? Por acaso ela me deve alguma coisa?" 
Certamente, os falantes de português (mesmo aqueles alunos que tiram notas baixas) interpretam a primeira ocorrên­cia de "receber" como se esse verbo fosse completado por "sua mãe" (ou "ela", "a", dependendo do dialeto). Isto é, interpre­tam a pergunta como se ela fosse: "Você não vai receber sua mãe?" Depois da fala da segunda personagem, quem ouve esta piada se dá conta de que o complemento de "receber" não é "a mãe", mas alguma coisa vaga, algo como "dívida", "di­nheiro" etc. E também se dá conta de que se trata, então, de dois sentidos do verbo "receber" ('recepcionar', na primeira fala, e 'ter de volta', 'ganhar', 'ser pago', na segunda fala). Ora, esse tipo de saber é muito complexo e todos os falantes o possuem. Se ocorrer que alguns falhem na interpretação dessa piada, isso não significa que falharão em outros casos. O que pode mostrar que nem todos sabem tudo, mas todos sabem muito.
Se entendermos dessa forma o que seja saber uma lín­gua, podemos dizer, com absoluta consciência de estarmos dizendo a maior das verdades, que a escola de fato não ensina língua materna a nenhum aluno (pode ensinar uma língua estrangeira, dependendo da metodologia escolhida). A escola recebe alunos que já falam (e como falam, em especial durante nossas aulas!...). Se as línguas e dialetos são complexos — vimos esse tópico no capítulo anterior — e se os falantes os conhecem, já que os falam, então os falantes, inclusive os alunos em início de escolarização, têm conhecimento de uma estrutura complexa. Portanto, qualquer avaliação da inteligên­cia do aluno com base na desvalorização de seu dialeto (isto é, medida apenas pelo domínio do padrão e/ou da escrita padrão) é cientificamente falha. A consequência a tirar é que os alunos que falam dialelos desvalorizados são tão capazes quanto os que falam dialetos valorizados, embora as instituições não pensem assim.
Não se conclua do que se disse acima que as escolas não teriam mais o que fazer, segundo este ponto de vista. A quem concluísse isso, relembraria a primeira tese defendida aqui: a função da escola é ensinar o padrão, em especial o escrito (relembre-se que foi dito acima que, na verdade, os grandes problemas escolares estão no domínio do texto, não no da gramática). Até porque, quando a escola ensina, o que ela ensina mesmo é a modalidade escrita dessa língua, mas não propriamente a língua. Inclusive, para ensinar a modali­dade escrita, deve pressupor — e pressupõe de fato — um enorme conhecimento da modalidade oral. Ora, mesmo para ensinar "só" a escrita padrão, a escola tem tarefas imensas. Mas, deve-se reconhecer que são bem menores do que seriam se os alunos não soubessem nem falar! No dia em que as escolas se dessem conta de que estão ensinando aos alunos o que eles já sabem, e que é em grande parte por isso que falta tempo para ensinar o que não sabem, poderia ocorrer uma verdadeira revolução. Para verificar o quanto ensinamos coi­sas que os alunos já sabem, poderíamos fazer o seguinte teste: ouvir o que os alunos do primeiro ano dizem nos recreios (ou durante nossas aulas), para verificar se já sabem ou não fazer frases completas (e então não precisaríamos fazer exercícios de completar), se já dizem ou não períodos compostos (e não precisaríamos mais imaginar que temos que começar a ensi­ná-los a ler apenas com frases curtas e idiotas), se eles sabem brincar na língua do "pê" (talvez então não seja necessário fazer tantos exercícios de divisão silábica), se já fazem per­guntas, afirmações, negações e exclamações (então, não pre­cisamos mais ensinar isso a eles), e assim quase ao infinito. Sobrariam apenas coisas inteligentes para fazer na aula, como ler e escrever, discutir e reescrever, reler e reescrever mais, para escrever e ler de forma sempre mais sofisticada etc.

NÃO EXISTEM LÍNGUAS UNIFORMES

         Alguém que estivesse desanimado pelo fato de que parece que as coisas não dão certo no BrasiI e que isso se deve ao "povinho" que habita esse país (conhecem a piada?) poderia talvez achar que tem um argumento definitivo, quan­do observa que "até mesmo para falar somos um povo des­leixado". Esse modo de encarar os fatos de linguagem é bastante comum, infelizmente. Faz parte da visão de mundo que as pessoas têm a respeito dos campos nos quais não são especialistas. Em outras palavras, é uma avaliação falsa. Mas, como existe, e como também é um fato social associado à linguagem, deve ser levado em conta. Por isso, para quem pretende ter uma visão mais adequada do fenômeno da lin­guagem, especialmente para os profissionais, dois fatos são importantes: a) todas as línguas variam, isto é, não existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma; b) a variedade linguistica é o reflexo da variedade social e, como em todas as sociedades existe alguma diferença de status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas diferenças se refletem na língua. Ou seja: a primeira verdade que devemos encarar de frente é relativa ao fato de que em todos os países (ou em todas as "comunidades de falantes") existe variedade de língua. E não apenas no Brasil, porque seríamos um povo descuidado, relapso, que não res­peita nem mesmo sua rica língua. A segunda verdade é que as diferenças que existem numa língua não são casuais. Ao contrário, os fatores que permitem ou influenciam na varia­ção podem ser detectados através de uma análise mais cuida­dosa e menos anedótica.
Um dos tipos de fatores que produzem diferenças na fala de pessoas são externos à língua. Os principais são os fatores geográficos, de classe, de idade, de sexo, de etnia, de profissão etc. Ou seja: pessoas que moram em lugares dife­rentes acabam caracterizando-se por falar de algum modo de maneira diferente em relação a outro grupo. Pessoas que pertencem a classes sociais diferentes, do mesmo modo (e, de cena forma, pela mesma razão, a distância — só que esta é social) acabam caracterizando sua fala por traços diversos em relação aos de outra classe. O mesmo vale para diferentes sexos, idades, etnias, profissões. De uma forma um pouco simplificada: assim como certos grupos se caracterizam atra­vés de alguma marca (digamos, por utilizarem certos trajes, por terem determinados hábitos etc.), também podem carac­terizar-se por traços linguísticos. Para exemplificar: podemos dizer que fulano é velho porque tem tal hábito (fuma cigarro sem filtro, por exemplo), ou porque fala "Brasil" com um "l" no final (ao invés de falar "Brasiu", com uma semivogal, como em geral ocorre com os mais jovens). Ou seja, as línguas fornecem meios também para a identificação social. Por isso, é frequentemente estranho, quando não ridículo, um velho falar como uma criança, uma autoridade falar como uma pessoa simples etc. Por exemplo, muitos meninos não podam ou não querem usar a chamada linguagem correta na escola, sob pena de serem objeto de gozação por parte dos colegas, porque em nossa sociedade a correção é considerada uma marca feminina.
Também há fatores internos à língua que condicionam a variação. Ou seja, a variação é de alguma forma regrada por uma gramática interior da língua. Por isso, não é preciso estudar uma língua para não "errar" em certos casos. Em outras palavras, há "erros" que ninguém comete, porque a língua não permite. Por exemplo, ouvem-se pronúncias alter­nativas de palavras como caixa, peixe, outro: a pronúncia padrão incluiria a semi vogal, a pronúncia não padrão a elimi­naria (caxa, pexe, otro). Mas nunca se ouve alguém dizer peto ou jeto ao invés de peito e jeito. Por que será que os mesmos falantes ora eliminam e ora mantém a semi vogal? Alguém pode explicar por que o i cai antea de certas consoantes e não diante de outras? Alguém pode explicar por que o u cai antes de t (otro) e o i não cai no mesmo contexto (peito, jeito)? Certamente, então, o tipo de semivogal (i ou u) e a consoante seguinte são parte dos fatores internos relevantes para expli­car esse fato que, de alguma forma, todo falante conhece.
Outro exemplo: podem-se ouvir várias pronúncias, em vários lugares do país, do som que se escreve com a letra l em palavras como alguma: alguma, auguma, arguma. A variação também existirá em palavras como planta: planta ou pranta (mas nunca ouviremos puanta). Mai, o l será sempre um l em palavras coma lata. Ou seja: no fim da sílaba, ele varia; no meio, também (embora não com o mesmo número de variantes). Mas, no início, nunca. E isso vale para falantes cultos e incultos.
Mais exemplos: poderemos ouvir "os boi", "dois cara", "Comédia dos Erro", mas nunca "o bois", "um caras" ou "Comédia do erros". Ouviremos muitas vezes "nós vai", mas nunca "eu vamo(s)". Assim, as variações linguísticas são condicionadas por fatores intemos à língua ou por fatores sociais, ou por ambos ao mesmo tempo.
Alguns sonham com uma língua uniforme. Só pode ser por mania repressiva ou medo da variedade, que é uma das melhores coisas que a humanidade inventou. E a variedade linguística está entre variedades as mais funcionais que exis­tem. Podemos pensar na variação como fonte de recursos alternativos: quanto mais numerosos forem, mais expressiva pode ser a linguagem humana. Numa língua uniforme talvez fosse possível pensar, dar ordens e instruções. Mas, e a poesia? E o humor? E como os falantes fariam para demons­trar atitudes diferentes? Teriam que avisar (dizer, por exemplo, "estou irritado", "estou à vontade", "vou tratá-lo formalmente")?
E como produzir a uniformidade, se a variedade linguística é fruto da variedade social? Esta é uma questão sem dúvida interessante. Pesquisas feitas em vários países mostram que há uma diferença na fala de homens e de mulheres, por exemplo. A fala das mulheres é mais semelhante à norma culta do que a dos homens. Isso seria resultado de um comportamento linguístico mais "correto" por parte das mulheres, comportamen­to que resulta de valores que fazem com que esperemos comportamentos diferentes por parte de homens e de mulheres, sendo que esperamos comportamentos mais corretos (o que quer que sejam) por parte das mulheres. Comportar-se como homem, era nossa sociedade inclui ser menos correto do que uma mulher (menos gentiI, menos educado, mais descuidado). O resultado de tais valores é que, para um homem, falar corretamente é mais ou menos como usar uma saia, segundo ilustrativa comparação do sociolinguista inglês Peter Trudgill.
O que fazer para uniformizar a linguagem de homens e mulheres? Não é necessário imaginar uma solução radical, como eliminar um dos sexos. Mas, poder-se-ia questionar seriamente os valores machistas que produzem esta diferen­ça. Nesse sentido, uma discussão sobre valores sociais pode ser uma aula de português mais valiosa e frutífera do que uma aula com exercícios para eliminar gírias, regionalismos e solecismos.

NÃO EXISTEM LÍNGUAS IMUTÁVEIS
Uma das coisas que aprendemos na escola é que o português veio do latim. Ou seja, que o português é uma língua que não foi sempre o português, não foi sempre como é. Se estudássemos um pouco mais esse tipo de assunto, aprenderíamos que também o latim é uma língua que veio de outras línguas, e que o latim provavelmenie não foi a língua falada pelos primeiros seres humanos. Isto é: a) o latim não é uma língua totalmente pura; b) o latim também é uma língua que não permaneceu sempre igual a si mesma, qualquer que seja o estágio escolhido para análise; c) as coisas não termi­nam com um exemplo em latim.
Os fatos, grosseiramente, são da seguinte ordem: 1) o latim nem sempre foi o latim de Cícero, César, Virgílio etc. Antes de sê-lo, foi uma língua "pouco cultivada". Em primeiro lugar, apenas falada; em segundo, falada principalmente por pessoas não cultas, pois não havia "no início" do latim tais pessoas cultas, como ocorreu mais tarde; 2) depois de ter sido língua de César, Cícero etc., o latim mudou tanto que, entre outras coisas, veio a ser o francês, o italiano, o espanhol, o português etc.
Ora, o que ocorreu com o latim não ocorreu por castigo ou por azar. Ocorreu com outras línguas, como o alemão, o inglês, o grego, o português. Na verdade, com todas as línguas. E continua ocorrendo. Não há língua que permaneça uniforme. Todas as línguas mudam. Esta é uma das poucas verdades indiscutíveis em relação às línguas, sobre a qual não pode haver nenhuma dúvida.
Suponhamos que esta verdade fosse divulgada, que se soubesse desta característica das línguas como se sabe que a Terra gira ao redor do Sol, ou como se sabe que existem microorganismos que não vemos, mas que atuam, tanto que são responsáveis por doenças, ou pela fermentação. Sem eles não teríamos, por exemplo, paralisia infantil, aids (o que seria bom) e cerveja e champanhe (o que seria mau). Conhecida, esta verdade poderia, então, ter consequências, tanto no que se refere ao que pensamos sobre as línguas no dia-a-dia quanto em relação aos princípios adotados no seu ensino. Por exemplo, não há razão de ordem científica para exigir que alunos — ou outras pessoas — conheçam formas arcaicas, que nunca ouvem e que são raras mesmo nos textos escritos mais correntes. Dito de outro modo: se temos claro que as línguas mudam, fica claro também por que os falantes não conhecem certas formas linguísticas: é que elas não são mais usadas na época em que os falantes se tornam falantes. Se não são usadas, não são ouvidas. Se não são ouvidas (e ouvidas muitas vezes), não podem ser aprendidas.
Nós nos acostumamos a pensar que há formas da língua que não são mais usadas, que só os dicionários registram e, por isso, são chamadas de arcaísmos. Mas, nos acostumamos também a pensar que os arcaísmos são sempre formas real­mente antigas. Ora, isso é um engano. Há arcaísmos mais arcaicos do que outros. Há muitas formas que nós eventualmente pensamos que    ainda são vivas, porque são ensinadas na escola e por isso são utilizadas eventualmente, mas, na verdade, já estão mortas, ou quase, porque não são mais usadas regularmente. Por exemplo, quem é que encontra falantes reais que utilizam sempre as regências de verbos como assistir, visar, preferir etc. como as gramáticãs mandam? O que estou sugerindo é que, de fato, devemos consi­derar formas como "assistir ao jogo" como arcaísmos e, consequentemente, formas como assistir o jogo como pa­drões, "corretas". Simplesmente por uma razão: no portu­guês de hoje, 'ser espectador de' se diz assistir, e não assistir a. E quem é que ouve falantes dizendo que lerão, dormirão, comerão? Se tais formas ocorrerem, ocorrerão [olha aí!) raramente, de preferência na escrita, e como consequência de um ensino explícito, quase como se se tratasse de formas de uma língua estrangeira. Ou seja, tais formas são a rigor arcaísmos, não se usam mais. Todos estão dizendo que "vão ler, vão dormir, vão comer". Por quê? Porque o português de hoje é assim, aprendemos a falar assim porque todos falam assim. Mesmo as pessoas cultas. É só ouvir suas entrevistas e discursos.
A questão não é, entretanto, saber se há ou não alguém com autoridade (um gramático, por exemplo) dizendo que agora se pode dizer assim ou assado. Que agora falar assim ou assado está certo. O argumento interessante é de outra natu­reza, não o de autoridade. O que estou afirmando é que os fatos linguísticos são esses. E que contra tais fatos, não adianta espernear. Se nós espernearmos contra esses fatos, deveríamos espernear contra todas as formas de mudança, inclusive as que ocorreram nos séculos III, X, XII, XVII etc. Porque só os fatos de hoje são ruins e devem ser desprezados? E tem mais: tais fatos podem ser explicados. Além de poderem ser explicados, eles explicam, por sua vez, porque nossos alunos (ou nossos vizinhos) falam como falam. Além de, evidentemente, explicarem também porque nós mesmos falamos assim... Ou seja, explicam porque falar assim não é errado, mas é simplesmente falar segundo as regras da língua de hoje, do português vivo. Se pensássemos dessa forma em relação às línguas, sem defen­der, explícita ou implicitamente, que as formas antigas são as únicas corretas ou, pelo menos, que são melhores que as atuais, nossa pedagogia das línguas mudaria. Por exemplo, todos perceberíamos que gastar um tempo enorme com regências e colocações inusitadas é, a rigor, inútil. A prova é que a maioria dos que as estudam não aprende tais formas, ou, pelo menos, não as usa.
Há boas justificativas para defender a hipótese de que o ensino de formas raras e arcaicas não deveria ser importante na escola. Mas, que fique claro: não se trata agora de incentivar um preconceito contra o domínio dessas formas "escorreitas". Não se trata de achar agora que aqueles que utilizam formas mais antigas é que estão errados. Traia-se apenas de não haver preconceito contra o domínio e a utilização das formas linguísticas mais recentes, ou que mais recentemente se tomaram, de fato, o novo padrão. Ou, melhor dizendo, trata-se de aceitar que se utilizem também nos textos escritos formas linguísticas mais informais (o que não quer dizer aceitar todas), que em geral consideramos aceitáveis apenas na fala. A razão é que estas formas, na verdade, são hoje as corretas, são elas que constituem a língua padrão, porque já são faladas e escritas pelas pessoas cultas do país — coisa de que elas, eventualmente, não se dão conta.
Haveria certamente muitas vantagens no ensino de português se a escola propusesse como padrão ideal de língua a ser atingido pelos alunos a escrita dos jornais ou dos textos científicos, ao invés de ter como modelo a literatura antiga. Falo em literatura antiga porque, na moderna, se nós a lêssemos, encontraríamos muitas formas condenadas pelas gramáticas. Seria certamente ridículo que condenássemos alunos por não utilizarem corretamente o verbo haver, e depois lêssemos na aula o célebre poema de Drummond que começa assim: "No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra, no meio do caminho...". Ou, mesmo que o prestígio literário do autor não seja igual ao de    Drummond, seria estranho condenar um aluno por escrever (ou falar) como Chico Buarque: "Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu...".

FALAMOS MAIS CORRETAMENTE
DO QUE PENSAMOS

Uma das frases mais correntes sobre alunos ou outros cidadãos pouco cultos é que falam tudo errado. Ela tem sido empregada tanto em relação a alunos quanto em relação a pessoas de certas classes sociais, ou de outras regiões do país. Não há nada mais errado do que pensar que aqueles de quem se diz que falam errado falam tudo errado. Nós já sabemos que a ideia segundo a qual se fala errado (quando não se fala como falamos ou como gostaríamos que se falasse) é uma ideia cientificamente problemática, para dizer o mínimo. Já vimos quanto preconceito há embutido nela. Mas, mesmo que admitís­semos que falar diferente seja falar errado, deveríamos, pelo menos, analisar os fatos para sermos objetivos na avaliação dos erros. Quais são mesmo os erros e quantos são? Qual é o percen­tual de formas erradas numa página escrita ou em quinze minutos de fala? A resposta só pode vir depois de uma análise. Fora disso, é preconceito, ou pura impressão. Equivocada, em geral.
Quando ouvimos a fala de alguém, principalmente se se trata de alguém diferente de nós (mais pobre, mais ignorante, de outra região do país), certamente percebemos em sua fala algumas características que nos chamam a atenção. A algumas dessas características estamos acostumados a chamar de erros. A tentação será dizermos que Fulano fala tudo errado. Ou que fala de forma esquisita. O que acontece, de fato, é que tal pessoa, na maior parte do tempo, fala exatamente como nós. Mas, as características diferentes, mesmo que sejam pouco numerosas, chamam muito a nossa atenção. Por isso, caracte­rizamos a fala do outro como se ela contivesse apenas formas "erradas". Para se ter uma ideia de quanto isso é verdade, basta dizer que Labov, o sociolinguista mais conhecido, percebeu que as aparentemente numerosas diferenças de pronúncia entre os diversos grupos de falantes de Nova York poderiam ser resumidas, na verdade, a sua pronúncia de cinco sons: a ocor­rência ou não do r pós-vocálico, a pronúncia do th surdo, do th sonoro, e o grau de abertura das vogais e e o. Não é que nâo haja outras diferenças. É que estas chamam a atenção, diferen­ciam falantes, enquanto que outras diferenças não sâo conside­radas pelos ouvintes. Ou seja, se um falante de Nova York disser the boy, ele será classificado pelo ouvinte como bom ou mau falante, como mais ou menos culto etc., a depender da pronúncia adotada para o primeiro som do artigo "the" e da vogal da palavra "boy". Isso quer dizer que não se presta atenção à pronúncia do "e" de "the", nem à pronúncia do "b" e do "y" de "boy".
Transponhamos o problema para o português: se alguém diz vô saí (sem o ditongo de "vou" e sem o "r" de "sair"), nós praticamente não percebemos que houve um "erro". Mas, se alguém disser "nós foi", esse "erro" é percebido. É que uma dessas formas já não distingue falantes, já que falantes de todos os grupos sociais a utilizam. A outra forma distingue falantes, porque certos grupos a utilizam e outros, não.
Esse é um lado da questão. Repetindo: há "erros" que chocam e "erros" que não chocam mais. Mas, o mais impor­tante é dar-nos conta de que não é verdade que aqueles que "erram" erram tudo. De fato, se utilizarmos bons critérios para contar os "erros" e os acertos, concluiremos logo que é rela-tivamente pequena a diferença entre o que um aluno (ou outro cidadão qualquer) já sabe da sua língua e o que lhe falta saber para dominar a língua padrão. Uma comparação bem feita entre o que é igual e o que é diferente na fala de pessoas diferentes de um país como o Brasil mostra que as semelhanças são muito maiores que as diferenças. Isso, aliás, é verdadeiro tanto para o português do Brasil quanto para o inglês dos Estados Unidos. Para concluir isso, pode-se mesmo dispensar uma análise em profundidade, que demandaria tempo e muito dinheiro para ser feita. Uma análise de um conjunto significativo de textos escritos ou de falas gravadas de nossos alunos revelaria que isso é sem dúvida verdadeiro. Análises um pouco cuidadosas mostram: a) que alunos acertam mais do que erram; b) que os erros são em geral hipóteses significativas (se a comunidade de falantes não as aceita, elas são frequentemente abandonadas); c) que os erros são sempre os mesmos; d) que o número de erros é bem maior do que os tipos de erros, o que provavelmente significa que a substituição de uma hipótese por outra que elimine um tipo de erro elimina muitos erros.
Esclareçamos melhor, à custa de alguma repetição, duas coisas: a) como contar os erros; b) há mesmo mais acertos do que erros?
Há duas maneiras de contar erros: uma é contar os erros individualmente, sem classificá-los: a outra é contar tipos de erros, isto é, contar erros classificando-os. Se, ao invés de contar os erros, contarmos os tipos de erros, a impressão de que eles são pouco numerosos fica mais forte. Suponhamos que encontremos quem diga "os livro", "as casa", "os amigo". Três erros? Depende do modo de contar. Eu diria que não. Que só há um erro (na comparação entre esta forma de falar e a forma considerada padrão, "gramatical", bem entendido). Se um aluno tem esse tipo de problema na disciplina de português, o professor não terá que trabalhar para eliminar três problemas, mas só um: para simplificar, trata-se de trocar uma regra de concordância por outra. Ou de aprender também outra regra. Quando o aluno vier a dizer "os livros", terá aprendido uma regra alternativa e estará em condições de dizer, igualmente, "as casas" e "os amigos". Portanto, numa contagem inteligen­te, esse aluno teria cometido um erro, não três, porque essa é a contagem relevante para a aprendizagem, já que aprendemos por regras, não por casos individuais. Imaginemos um aluno que diga (ou escreva) "As casa tão boa". Alguns ficam aterro­rizados com tais ocorrências. Certamente, se se tratar de um aluno de colegial e ele escrever de tal forma por não conhecer outra, isso será um sério problema (da escola...). Mas, imagi­nemos que queiramos comparar formas linguísticas, mais do que avaliar alunos. Comparemos esta forma com a forma dita correta, padrão. Os "erros" seriam de concordância de número, e a forma do verbo "estar" (tão). Mas, vejamos o que há de correto, de igual ao padrão: a concordância de gênero está perfeita (isto é, não há formas como "Os casa", "As casa tão bom"); a sintaxe de colocação é a mesma do português padrão, isto é, esse falante não está dizendo, por exemplo, "Casas as boa tão", "As tão boa casas"," As boa tão casa" etc. Ou seja, para uma dezena de erros possíveis, nosso mau aluno hipotético cometeu só dois!
Professores desesperados poderiam verificar duas coisas nos textos de seus alunos que cometem erros de ortografia: classificar os tipos de erros (os que dependem da pronúncia local, os que se devem a incoerências do sistema ortográfico etc.) e, em seguida, fazer contagens do seguinte tipo: para cada tipo de erro possível, quantas vezes os alunos acertam e quantas vezes erram. Minha experiência é que os acertos são sempre mais numerosos do que os erros. Na hora de avaliar, os profes­sores aceitariam tirar um ponto para cada erro e dar um ponto para cada acerto?


LÍNGUA NÃO SE ENSINA, APRENDE-SE

Um dos ainda numerosos "mistérios" em relação ao ser humano diz respeito ao fato de que todos os indivíduos da espécie — salvo por algum problema muito grave — aprendem a falar com uma rapidez espantosa, se considerarmos a complexidade do objeto aprendido, uma língua. Poder-se-ia objetar que alguns aprendem porque falam de forma simplificada, ou porque sua língua é um tanto primitiva etc. Já vimos que afirmações como essa refletem apenas preconceitos, desconhecimento da verdadeira natureza das línguas, que são muito complexas, mesmo no caso daquelas que pensamos que são simples e mesmo no caso dos dialetos que pensamos que são os mais simples das línguas que acreditamos serem as mais simples.
O que é ainda mais espantoso é que todos aprendem com velocidade espantosa um objeto complexo, e sem ser ensina­dos. De fato, os pais, ou adultos em geral, não ensinam as línguas às crianças. Não, pelo menos, se entendermos por ensino aquele conjunto de atividades que se dão, tipicamente, numa escola. Alguns, um pouco mais maldosos — mas talvez não muito distantes da verdade — talvez venham a pensar que as crianças do mundo todo, de todas as épocas, aprendem suas línguas exatamente porque não são ensinadas — exatamente porque pais não agem com elas como se houvesse necessaria­mente fases, métodos, exercícios...
Pode ser que esta opinião não esteja muito longe da verdade. Disse acima que a questão da aquisição da linguagem é um tanto misteriosa. De fato, ninguém sabe muito bem o que se passa na mente humana, ou, mesmo, o que há nela eventual­mente de inato, de herança biológica. O fato observável é que todos falam, e muito, e bem, a partir dos três anos de idade. E, por mais que seja efetiva e constante a presença dos adultos junto às crianças, por mais que haja entre eles atividades linguísticas, não há nada que se assemelhe a urn ensino formal de uma disciplina, e, muito menos, algo que se assemelhe a. exercícios.
Isso não significa que se aprenda facilmente. Na ver­dade, o trabalho dos adultos e das crianças é contínuo e, às vezes, difícil. Principalmente, é constante. Ou, mais funda­mental ainda — é uma atividade significativa. Esta parece ser a questão principal e crucial. Qualquer que seja a teoria que adotemos sobre o que seja uma criança — já falamos disso mais acima —, isto é, quer sejamos inatistas, interacionistas ou camportamentalistas, com todas as variações que esses rótulos permitem, de qualquer forma temos que reconhecer que os adultos não propõem exercícios de linguagem às crianças na vida cotidiana. Deixados de lado detalhes (às vezes certamente importantes), o que podemos observar é que ocorre um uso efetivo da linguagem, um uso sempre contextualizado, uma tentativa forte de dar sentido ao que o outro diz etc. E, certamente, nenhum de nós faria, nem conhece quem faça, coisas como as seguintes: propor a uma criança de dois anos (ou menos) que faça tarefas como completar, procurar palavras de um certo tipo num texto, construir uma frase com palavras dispersas, separar sílabas, fazer frases interrogativas, afirmativas, negativas, dar diminutivos, au­mentativos, dizer alguma coisa vinte ou cem vezes, copiar, repetir, decorar conjugações verbais etc. Tudo isso são exem­plos de exercícios. Tudo isso se faz nas escolas, em maior ou menor quantidade. Nada disso se faz na vida real, porque nada disso ajuda ninguém a aprender uma língua. Em resumo, poderíamos enunciar uma espécie de lei, que seria: não se aprende por exercícios, mas por práticas significativas. Observemos como esta afirmação fica quase óbvia se pensarmos em como uma criança aprende a falar com os adultos com quem convive e com seus colegas de brinquedo e de interação em geral. O domínio de uma língua, repito, é o resultado de práticas efetivas, significativas, contextualizadas. A escola poderia aprender muito com os procedimentos "pedagógi­cos" de mães, babás e mesmo de crianças. O fato do que as crianças não façam exercícios, não repitam formas fora de um contexto significativo não significa que não sejam expos­tas suficientemente às línguas. É que pode não parecer, mas falamos tanto e as regras são relativamente tão poucas que acabamos por aprender. Por isso, crianças com alguns anos de idade utilizam o tempo todo formas que sequer imagina­mos, mas que veríamos claramente que conhecem, se exami­nássemos sua fala com cuidado. Perguntam, afirmam, exclamam, negam, produzem períodos complexos e conside­ram significativamente o contexto sempre que lhes parecer relevante ou tiverem oportunidade. Como aprenderam? Ouvin­do, dizendo e sendo corrigidas quando utilizam formas que os adultos nao aceitam. Sendo corrigidas: isto é importante. No processo de aquisição fora da escola existe correção. Mas não existe reprovação, humilhação, castigo, exercícios de fixação e de recuperação etc.
O modo de conseguir na escola a eficácia obtida nas casas e nas ruas é "imitar" da forma mais próxima possível as atividades linguísticas da vida. Na vida, na rua, nas casas, o que se faz é falar e ouvir. Na escola, as práticas mais relevantes serão, portanto, escrever e ler. Claro que se falará às pampas na escola, e, portanto, se ouvirá, na mesma proporção (um pouco menos, um pouco mais...). Mas, dado o projeto da escola, ter e escrever são as atividades importantes. Como aprendemos a falar? Falando e ouvindo. Como aprenderemos a escrever? Escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e reescrevendo, e tendo nossos textos lidos e comentados muitas vezes, com uma frequência semelhante à frequência da fala e das correções da fala. É claro que o aprendizado não será muito eficiente se tais atividades forem apenas excepcionais. Mas, se forem constantes, com as cabeças que temos — seja lá o que for que tenhamos dentro delas ou associado ao que temos dentro delas — certamente seremos leitores e "escrevinhado­res" sem traumas e mesmo com prazer, em pouco tempo. Só não conseguiremos se nos atrapalharem, se nos entupirem de exercícios sem sentido.
Falar é um trabalho (certamente menos cansativo que outros). Ler e escrever são trabalhos. A escola é um lugar de trabalho. Ler e escrever são trabalhos essenciais no processo de aprendizagem. Mas, não sâo exercícios. Se não passarem de exercícios eventuais, apenas para avaliação, certamente sua contribuição para o domínio da escrita será praticamente nula. Para se ter uma ideia do que significaria escrever como traba­lho, ou significativamente, ou como se escreve de fato "na vida", basta que verifiquemos como escrevem os que escre­vem: escritores, jornalistas. Eles não fazem redações. Eles pesquisam, vão à rua, ouvem os outros, lêem arquivos, lêem outros livros. Só depois escrevem, e lêem e relêem e depois reescrevem, e mostram para colegas ou chefes, ouvem suas opiniões, e depois reescrevem de novo. A escola pode muito bem agir dessa forma... desde que não pense só em listas de conteúdos e em avaliação ''objetiva".

SABEMOS O QUE OS ALUNOS AINDA NÃO SABEM?

De uma certa forma, tudo o que foi dito anteriormente são apenas coisas óbvias, de bom senso. Mas, talvez o que se vai ver agora seja ainda mais óbvio. Nélson Rodrigues diria que se trata do óbvio ululante. De todas as teses sobre língua e seu ensino que estou defendendo aqui, a que se segue é a mais evidente de todas e, talvez, a menos praticada. Em relação às outras, bem ou mal, as atitudes, em geral, são um pouco heterogêneas. Mas, em relação aos conteúdos de ensino, pare­ce-me que a atitude dos profissionais dos diversos escalões, desde os das Secretarias de Educação até os professores, pas­sando por coordenadores e diretores, é de "seriedade" e ceri­mônia tamanha que merece ser desmistificada.
Nos cursos de didática que fazemos nas faculdades ou nos cursos de magistério, aprendemos a elaborar planos de cursos, com objetivos, estratégias e quejandos. Nã minha opi­nião, trata-se de trabalho e papelada inúteis. Por isso, vou fornecer aqui uma "receita" óbvia para estipular programas de ensino para língua materna nos diversos anos escolares (com a ressalva de que jamais me refiro à alfabetização, pelo menos nos estágios iniciais — refiro-me, portanto, a programas de português para alunos que já lêem e escrevem minimamente). O princípio é o mais elementar possível. O que já é sabido não precisa ser ensinado.
Seguindo esse princípio, os programas anuais poderiam basear-se num levantamento bem feito do conhecimento prático de leitura e escrita que os alunos já atingiram e, por comparação com o projeto da escola, uma avaliação do que ainda lhes falta aprender Nada de consultar manuais e guias para saber o que se deve ensinar, por exemplo, numa sexta série. Nada, portanto, desses programas pré-fabricados para ir do simples ao complexo, presos a uma tradição que não se justifica a não ser por ser tradição. Por exemplo: para desco­brir o que os alunos de uma próxima sexta série já sabem e o que ainda não sabem, basta analisar os cadernos e demais materiais dos alunos que acabaram de concluir a quinta série na mesma escola, com um professor conhecido na escola e  com quem se pode discutir alternativas. Adotando esse critério para todas as séries, saberemos o que os alunos já domi­nam realmente e o que lhes falta ainda, em relação ao português padrão (escrito, principalmente). Descobriremos que livros já leram, como escrevem, quais os principais problemas que ainda têm (se ainda os houver), após determi­nado número de anos na escola. Com base em tal levantamen­to, organizaremos os "problemas" em séries, segundo sua especificidade e eventual dificuldade, definida com base também na psicologia de aprendizagem que adolamas na escola. Assim, alguns dos problemas serão postos como prioritários, exatamente aqueles que achamos que alunos típicos de determinada série podem eliminar. Outros, poderão ser deixados para séries mais avançadas (ou, peIo menos, não serão os prioritários numa determinada série). Não se pode esquecer, além disso, que o passar do tempo é um fator importante de aprendizado linguístico, porque, na nossa so­ciedade, como em outras, o aumento da idade dos jovens implica numa diversificação e sofisticação da interação so­cial, o que acarreta uma multiplicação dos recursos de lingua­gem que eles aprendem a manipular, além de descobrir o valor social associado a tais recursos — isto é, aprendem a distinguir estilos diversos e avaliá-los. Além disso, se a escola tiver um projeto de ensino interessante, através da leitura esse aluno terá tido cada vez mais contato com a língua escrita, na qual se usam as formas padrões que a escola quer que ele aprenda. Se fizermos este tipo de levantamento de forma adequada por vários anos, cada escola acabará por saber com bastante clareza o que lhe cabe no ensino do padrão e o que os alunos aprendem fora da escola.
Assim, por exemplo, provavelmente concluiremos que não é necessário estudar gênero, número, concordância etc., a nâo ser quando os alunos efetivamente erram e naqueles casos em que erram. Ou seja: há uma grande probabilidade de que, na maioria absoluta dos casos em que a estrutura da língua prevê a ocorrência do fenômeno da concordância, os erros sejam pouco numerosos. Provavelmente haverá mais casos problemáticos de concordância verbal do que de concordância nominal. Neste último caso, haverá problemas apenas nos lugares de sempre: palavras com "gênero duvidoso" (ou seja, com variação de gênero), casos de sujeitos compostos com elementos masculino e feminino e alguns outros casos raros. Diria que estes casos não são do tipo em que é melhor prevenir do que remediar. Se ocorrerem problemas, que se trabalhe sobre eles. Se não ocorrerem, não há porque trabalhar com eles. O mesmo vale para numerosas outras lições de gramática normativa. Por exemplo: é provavelmente uma enorme perda de tempo ensinara alunos de primeiro grau que existem dimi­nutivos e aumentativos, para, em seguida, solicitar que efetuem exercícios do tipo "dê o diminutivo de", "dê o aumentativo de". Só vale a pena trabalhar sobre tais questões para chamar a atenção para os valores de tais formas, para o fato de que há formas peculiares (como  "copázio" e "corpúsculo", por exemplo). Mesmo nesses casos, é necessário estar atento ao uso e ao sentido reais de tais palavras, para que não ocorra que se ensine que "corpúsculo" é o diminutivo de "corpo" em qualquer contexto; para isso, basta dar-se conta de que é em circunstâncias e com sentidos diferentes que dizemos "que corpinho!" e " há corpúsculos visíveis apenas com instrumen­tos como os microscópios".
Em resumo, parece razoável ensinar apenas quando os alunos erram, exatamente como fazem os adultos com as crianças. Se os alunos utilizam estruturas como "os livro", que essas estruturas sejam objeto de trabalho; mas se nunca dizem "vaca preto", para que insistir em estudar o gênero de "vaca"?
Vou fazer uma comparação com o ensino de outra língua para que as coisas fiquem bem claras, para que se possa perceber claramente qual é o espírito que preside o ensino de língua materna para alunos que já falam. Em geral, a tradição é tão forte que não conseguimos ver o que de fato fazemos quando ensinamos uma língua que os alunos conhecem fa­zendo de conta que eles não a conhecem. Tentemos colocar-nos em outra posição, para efeito de raciocínio: pensemos o que seria ensinar inglês, no Brasil, para crianças que, por alguma razão, aparecessem nas nossas escolas falando em inglês. Certamente, nâo lhes ensinaríamos o que lhes ensina­mos, isto é, uma língua "desde o início". Por que temos que "começar do começo" nas aulas de inglês? Porque nossos alunos nâo falam inglês. Mas, por que fazemos coisas seme­lhantes nas aulas de português, se os alunos falam português o tempo todo? Não seria melhor ensinar-lhes apenas o que não sabem?

ENSINAR LÍNGUA OU ENSINAR GRAMÁTICA ?

Todas as sugestões feitas nos textos anteriores só farão sentido se os professores estiverem convencidos —ou puderem ser convencidos — de que o domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de uma metalinguagem técnica.
Em outras palavras, se ficar claro que conhecer uma língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Que saber uma língua é uma coisa e saber analisá-la é outra. Que saber usar suas regras é uma coisa e saber explicitamente quais são as regras é outra. Que se pode falar e escrever numa língua sem saber nada "sobre" ela, por um lado, e que, por outro lado, é perfeitamente possível saber muito "sobre" uma língua sem saber dizer uma frase nessa língua em situações reais. Para dar um exemplo óbvio, sabe evidentemente mais inglês uma crian­ça de três anos que fala inglês usualmente com os adultos e outras crianças para pedir coisas, chingar, reclamar ou brincar, do que alguém que tenha estudado a gramática do inglês durante anos, mas não tem condições de guiar um turista americano para passear numa cidade brasileira.
Não vale a pena recolocar a discussão pró ou contra a gramática, mas é preciso distinguir seu papel do papel da escola — que é ensinar língua padrão, isto é, criar condições para seu uso efetivo. É perfeitamente possível aprender uma língua sem conhecer os termos técnicos com os quais ela é analisada. A maior prova disso é que em muitos lugares do mundo se fala sem que haja gramáticas codificadas, e sem as quais evidente­mente não pode haver aulas de gramática como as que conhe­cemos. Espero que ninguém diga que não sabem sua língua os falantes de sociedades ágrafas, isto é, nas quais não há escrita e muito menos gramáticas, no sentido de listas de regras ou procedimentos de análise. Mas, não é só entre os que poderiam ser chamados preconceituosamente de primitivos que isso ocorre. Tentemos responder a seguinte pergunta: que gramática do grego consultaram Ésquilo e Platão? Ora, não existiam gramáticas gregas (a não ser na cabeça dos falantes, isto é, eles sabiam grego). As primeiras obras que poderiam ser chamadas
de gramáticas (mas, mesmo assim, eram bastante diferentes das nossas), surgem no segundo século antes de Cristo apenas, e não surgem para que possam ser aprendidas pelos falantes, mas para orgenizar certos princípios de leitura que permitissem ler textos antigos, exatamente porque o grego ia mudando e, sem poder aprender o grego antigo, como poderiam os novos falantes entender textos antigos?
 Ou seja, os gregos escreveram muito ames de existir a primeira gramática grega, o mesmo valendo, evidentemente, para os escritores latinos, portugueses, espanhóis etc. Seria interessante que ficasse claro que são os gramáticos que con­sultam os escritores para verificar quais são as regras que eles seguem, e não os escritores que consultam os gramáticos para saber que regras devem seguir. Por isso, não faz sentido ensinar nomenclaturas a quem não chegou a dominar habilidades de utilização corrente e não traumática da língua.
Quando se discute ensino de língua e se sugere que as aulas de gramática sejam abolidas, ou abolidas nas séries iniciais ou, pelo menos, que não sejam as únicas aulas existen­tes na escola, logo se levantam objeções baseadas nos vestibu­lares e outros testes, como os concursos públicos, nos quais seria impossível ser aprovado sem saber gramática. Claro que este fato deve ser considerado. Mas, adequadamente. Se veri­ficássemos os fatos e não nossa representação deles (fora o achismo!), veríamos que o conhecimento explícito de gramá­tica não é tão relevante nessas circunstâncias. Por várias razões: a) quem elabora provas de português são, em geral, professores de português — basta, portanto, que os especialistas mudem de estratégia de avaliação; b) em muitos vestibulares e outras provas, há questões de gramática, é verdade. Mas há também questões de literatura e de interpretação de textos. Por que, então, damos tanta ênfase è gramática, ao invés de invertermos ou pelo menos equilibrarmos os critérios de importância, dando mais espaço em nossas aulas à literatura e à interpretação de textos? c) em muitos testes, vestibulares incluídos, a redação é eliminatória. Portanto, não é verdade que crucial para a apro­vação é a gramática; d) admitindo que a gramática fosse importante, então, deveríamos estar formando alunos que te­riam notas próximas de dez em provas de gramática. Mas, o que se vê são alunos que, depois de uma década de aulas de gramática, tiram notas mais próximas de um do que de dez. Ou será que não é porque não sabem gramática que têm notas baixas? Se for, só há uma explicação: é que as provas não sao compostas apenas de questões de gramática. Mas, então...
Falar contra a "gramatiquice" não significa propor que a escola só seja "prática", não reflita sobre questões de língua. Seria contraditório propor esta atitude, principalmente porque se sabe que refletir sobre a língua é uma das atividades usuais dos falantes e não há razão para reprimi-la na escola. Trata-se apenas de reorganizar a discussão, de alterar prioridades (discutir os preconceitos é certamente mais importante do que fazer análise sintática —eu disse mais importante, o que significa que a análise sintática é importante, mas é menos...). Além do mais, se se quiser analisar fatos de língua, já há condições de fazê-lo segundo critérios bem melhores do que muitos dos utilizados atualmente pelas gramáticas e manuais indicados nas escolas.
Por último, para coroar uma série de obviedades, uma última: as únicas pessoas em condições de encarar um trabalho de modificação das escolas são os professores. Qualquer pro­jeto que não considere como ingrediente prioritário os profes­sores — desde que estes, por sua vez, façam o mesmo com os alunos—certamente fracassará.











SEGUNDA PARTE
INTRODUÇÃO
  Na primeira parte, apresentei um conjunto de argumentos que, penso, poderiam convencer os leitores de que é com­pletamente desnecessário ensinar gramática na escola, se o objetivo for dominar a variedade padrão de uma língua e tornar os alunos hábeis leitores e autores pelo menos razoáveis. Mas, sei muito bem que há outros fatores atuando na escola, além dos critérios de ordem intelectual. Há, por exemplo, a pressão da tradição — que é ruim, mas cujo peso é grande e seria pouco inteligente desconhecer.
No que se refere à análise linguística, assim como é muito diferente nâo ser estruturalista depois de tê-lo sido e não estruturalista sem jamais tê-lo sido, acredito que é comple­tamente diferente trabalhar com gramática na escoIa depois de estar convencido de que ela não é indispensável para o ensino e, principalmente, depois de estar convencido de que uma coisa é o estudo da gramática e outra é o domínio ativo da língua. A diferença é ainda maior se ficar claro que há vários tipos de gramática e até mesmo vários tipos de gramaticas escolares, tradicionais. Por isso, nesta segunda parte, vou apresentar vários conceitos de gramática, comentar alguns outros concei­tos estreitamente relacionados com o ensino e, em seguida, fornecer, em grandes linhas, uma perspectiva de ensino de gramática destinado especificamente a quem tem como utopia alunos que escrevam e leiam, mesmo em situações relativa­mente precárias, isto é, antes da alteração das condições sociais atuais.
Para muitas pessoas das mais variadas extrações intelectuais e sociais, ensinar língua é a mesma coisa que ensinar gramática. Ou, o que é diferente, embora pareça mera inversão, para muitos, ensinar gramática é a mesma coisa que ensinar língua. Além disso, por ensino de gramática entende-se, fre­quentemente, a soma de duas atividades, que, eventualmente, se inter-relacionam, mas não sempre, nem obrigatoriamente.
As duas atividades são:
           a) estudo de regras mais ou menos explícitas de constru­ção de estruturas           (palavras ou frases). Um exemplo dessa primeira atividade é o estudo de regras ortográ­ficas, regras de concordância e de regência, regras de colocação dos pronomes oblíquos etc.
b) a análise mais ou menos explícita de determinadas construções. Exemplos da segunda atividade são cri­térios para a distinção entre vogais e consoantes, critérios de descoberta das partes da palavra (radical, tema, afixos), análise sintática da oração e do período, especialmente se isso se faz com a utilização de metalinguagem.
As duas atividades podem não estar relacionadas por­que, em princípio, pode-se realizar a primeira sem socorrer-se da segunda. Por exemplo, pode-se ensinar uma forma padrão da língua sem recorrer às razões explícitas que justificam tal forma. É o caso de quando se ensina que o correto é dizer "prefiro x a y" e não "prefiro x do que y", pura e simplesmente, sem justificar a regra com uma análise do conteúdo semântico de "preferir". Atividades como essa são correntes (ou deve­riam sê-Io). Mas, podem-se realizar atividades do primeiro tipo também com o auxílio da metalinguagem sem a qual não se podem realizar atividades do segundo tipo. É o caso, por exemplo, de quando se ensina que o verbo concorda com o sujeito (ao invés de ensinar apenas, por exemplo, que a forma correta é "os livros são" e não "os livros é"). Num caso, utilizam-se termos metalinguísticos (verbo, concorda e sujeito); no outro, apenas se propõe a substituição de uma forma por outra.
Do ponto de vista do ensino de língua padrão, parece evidente que o primeiro tipo de atividade, cuja finalidade, de fato, é tentar consolidar o uso de uma variedade de prestígio, é mais relevante do que o segundo, que só se justifica por critérios independentes do ensino da língua. (Em sua Gramá­tica descritiva da língua portuguesa (Ática), Perini justifica o ensino de gramática na escola por razões culturais. Assim como se estudam tópicos sobre agricultura chinesa e os desertos africanos, sem nenhuma perspectiva de aplicação prática, é de interesse aprender coisas sobre como se estrutu­ram as línguas. Justificar o ensino da gramática por razões culturais significa, entre outras coisas, admitir que o ensino da gramática pode não ter nada a ver com o ensino da língua — no que concordo com Perini, como deve ter ficado muito claro na primeira parte desse livro.)
Como já se viu no parágrafo acima, que destacou apenas um aspecto da questão do ensino da gramática, pode ocorrer que quando duas pessoas falam de gramática, ou de ensino de gramática, não estejam falando da mesma coisa. Uma pode estar falando de formas padrões por oposição a formas popu­lares, e outra, de como certos aspectos de uma língua se estruturam. É talvez pelo fato de não estar sempre claro para todos que esta questão é complexa, que, muito frequentemente, discussões sobre o tema não prosperam. Os contendores podem achar que discordam quando concordam, e podem achar que concordam quando, de fato, estão discordando. Talvez isso explique, em parte, entre outras razões, a distância entre os projetos de ensino e sua execução.
Por isso, nesta segunda parte, vou ocupar-me exclusiva­mente de uma discussão relativa a conceitos de gramática. Penso que esta deve ser uma discussão prévia à discussão sobre a introdução da gramática na escola. É melhor saber o que se está de fato propondo que os alunos aprendam e qual a relação entre a disciplina escolar e os objetivos de ensino de língua.
Sabe-se que a questão do ensino da gramática na escola tem sido longamente discutida. A discussão continua atual, seja porque o professor precisa decidir, caso haja ensino de gramá­tica na escola, qual proporção do tempo destinado ao ensino da língua deve ser dedicado a cada uma das estratégias (leitura, redação, gramática etc.), além do fato de que a decisão pode variar conforme o nível de ensino e o tipo de classe, ou, até mesmo, o tipo de escola. Outra razão é que esta discussão revela diferentes orientações didáticas (ensinar a partir do uso observado ou ensinar a partir de regras), diferentes concepções do papel da língua numa sociedade cheia de contrastes como é a nossa (serve para a comunicação ou abre acesso a oportunidades de emprego) e diferentes objetivos atribuídos à escola de primeiro e segundo graus (preparar para a vida ou preparar para o vestibular, dois objetivos que só coincidem para um número extremamente limitado de alunos).
Fundamentalmente, a discussão continua atual porque, embora tenha havido muita mudança de discurso, a prática escolar continua basicamente a mesma, exceto em poucos enclaves muito particulares.




CONCEITOS DE GRAMÁTICA

Comecemos pelo óbvio: se não para ensinar gramática, pelo menos para defender tal ensino, é preciso — ou parece decente que assim seja — saber o que é gramática. Acontece que a noção de gramática é controvertida: nem todos os que se dedicam ao estudo desse aspecto das línguas a definem da mesma maneira. No que segue, proponho que se aceite, para efeito de argumentação, que a palavra gramática significa "conjunto de regras". Não é uma definição muito precisa, mas não é equivocada. Serve bem como guarda-chuva. Mas, acres­cente-se logo que a expressão "conjunto de regras" também pode ser entendida de várias maneiras. E é trabalhando sobre essa expressão que distinguirei vários tipos de gramática.
Como o que interessa é formular pontos de reflexão e argumentos especialmente para professores de primeiro e segundo graus, destacarei três maneiras de entender "conjunto de regras", aquelas que parecem diretamente pertinentes às questões do ensino, no que é relevante atualmente, em decorrência de determinada tradição (que exclui, por exemplo, gramáticas funcionais). Assim, tal expressão pode ser entendida como:

1) conjunto de regras que devem ser seguidas;
2) conjunto de regras que são seguidas;
3) conjunto de regras que o falante da língua domina.

As duas primeiras maneiras de definir "conjunto de regras" dizem respeito ao comportamento oral ou escrito dos membros de uma comunidade linguística, no sentido de que as regras em questão se referem à organização das expressões que eles utilizam. Ver-se-á mais adiante a diferença entre as duas. A terceira maneira de definir a expressão refere-se a hipóteses sobre aspectos da realidade mental dos mesmos falantes. Vou detalhar um pouco essas três noções, de modo a caracterizar três tipos de gramáticas, ou três sentidos um pouco mais precisos para a palavra "gramática".


GRAMÁTICAS NORMATIVAS

A primeira definição de gramática — conjunro de regras que devem ser seguidas — é a mais conhecida do professor de primeiro e segundo graus, porque é em geral a definição que se adota nas gramáticas pedagógicas e nos livros didáticos. Com efeito, como se pode ler com bastante frequência nas apresenta­ções feitas por seus autores, esses compêndios se destinam a fazer com que seus leitores aprendam a "falar e escrever corretamente". Para tanto, apresentam um conjunto de regras, relativamente explícitas e relativamente coerentes, que, se dominadas, poderão produzir como efeito o emprego da variedade padrão (escrita e/ou oral). Um exemplo de regra deste tipo é a que diz que o verbo deve concordar com o sujeito, por um lado, e, por outro, que existe uma forma determinada e única para cada tempo, modo e pessoa do verbo: a forma de "pôr" que concorda com "eles" no pretérito perfeito do indicativo é "puseram", e não "puse­ro", "pôs", "ponharam", "ponharo" ou "ponhou". Gramáti­cas desse tipo são conhecidas como normativas ou prescritivas. Na suposição de que este tipo de gramática é suficientemente conhecido, não explicitarei mais suas características.


GRAMÁTICAS DESCRITIVAS

A segunda definição de gramática — conjunto de re­gras que são seguidas — é a que orienta o trabalho dos linguistas, cuja preocupação é descrever e/ou explicar as línguas tais como elas são faladas. Neste tipo de trabalho, a preocupação central é tornar conhecidas, de forma explícita, as regras de fato utilizadas pelos falantes — daí a expressão "regras que são seguidas", (Ficou claro, espero, na primeira parte, que todos os que falam sabem falar, e que isso significa que seguem regras, já que grupos de falantes "erram" de maneira organizada, isto é, regrada. Adiante, falar-se-á um pouco sobre regras, e a questão deve ficar ainda mais clara.) Pode haver diferenças entre as regras que devem ser seguidas e as que são seguidas, em parte como consequência, do fato de que as línguas mudam e as gramáticas normativas podem continuar propondo regras que os falantes não seguem mais —ou regras que muito poucos fafantes ainda seguem, embora apenas raramente. Vejamos alguns exemplos de diferenças entre o que espera uma gramática normativa e o que nos revela uma gramática descritiva.
Se observarmos as conjugações verbais, veremos que algumas formas não existem mais, ou só existem na escrita. Em especial:

a) as segundas pessoas do plural que encontramos nas gramáticas desapareceram (vós fostes, vós iríeis etc.). Na verdade, desapareceram tanto o pronome de se­gunda pessoa do plural "vós" quanto a forma verbal correspondente. Hoje, se diz "vocês foram", "vocês iriam" etc.;
b) os futuros sintéticos praticamente não se ouvem mais, embora, certamente, ainda se usem na escrita. Na modalidade oral, o futuro é expresso por uma locução (vou sair, vai dormir etc.), e não mais pela forma sintética (sairei, dormirá);
c) o mesmo se pode dizer do mais que perfeito "sim­ples"; ninguém mais fala "fora", "dormira" etc., mas apenas "tinha ido", "tinha dormido" etc.;
d) a forma do infinitivo nao tem mais o "r" final. Ou seja, ninguém fala, de  fato, "vou dormir", mas "vou dormi".

Um outro domínio em que há algumas diferenças notá­veis é o sistema pronominal. Certamente, qualquer observação mostrará que:

a) como já vimos, não existe mais a forma "vós" (e sua correspondente em posição de objeto — "vos"); a forma usada para referir-se a mais de um interlocutor é "vocês";
b) apenas em algumas "regiões ainda se usa a forma "tu"; na maior parte      do país, o pronome de segunda pessoa é "você"; no entanto, a forma "te" é corrente para expressar a segunda pessoa em posição de objeto direto e indireto. A gramática normativa considera esse fato um problema. Para uma gramática descriti­va, trata-se apenas de um fato, um fato regular, isto é, constante;
c) as formas de terceira pessoa em posição de objeto direto "o/a/os/as" também não se ouvem mais; ocor­rem eventualmente na escrita. As formas que ocorrem de fato em seu lugar são, variavelmente, "ele/ela/eles/elas", apesar de parecer um escândalo a certos ouvidos; e, cada vez mais, ocorre como objeto direto a forma "lhe(s)", alternando essa função com a de objeto indirelo — que, aliás, cada vez mais é cumprida pelas formas "a/para ele; a/para ela" etc.;
d) no lugar de "nós", mais frequentemente do que su­pomos, usa-se a forma "a gente", tanto na posição de sujeito quanto na de complemento (a gente foi, ela viu a gente).

Uma observação indispensável, quando se fala de pro­nomes, é que, no português do Brasil, as regras de colocação de pronomes átonos ainda encontráveis nas gramáticas e ensinadas na escola como desejáveis são evidentemente decorrência de uma visão equivocada da língua. Só é possível entender que ainda se suponha que aquelas regras funcionem ou, pelo menos, deveriam funcionar, por absoluto saudosismo e purismo. Em Portugal, elas são relativamenie correntes — pode-se ouvir uma mesóclise de um analfabeto — mas, defender que sejam aceitas no Brasil equivale a propor que se volte a formas do português medieval. Purismo por purismo, porque não?
Na verdade, as próprias gramáticas normativas com­portam sempre partes bastante relevantes e extensas de des­crição. Por exemplo, quando distribuem palavras em classes diferentes, quando distinguem partes da oração, ou quando segmentam as palavras em radical, vogal temática e desinên­cia, as gramáticas normativas são descritivas. Mas, muito frequentemente, se não sempre, as passagens descritivas das gramáticas normativas referem-se sempre às formas "corre­tas", e por isso descrição e prescrição se confundem. O que caracteriza uma gramática puramente descritiva é que eIa não tem nenhuma pretensão prescritiva. Numa perspectiva des­critiva, constata-se, por exemplo, que, no português de hoje, existem pelo menos três maneiras de dizer "eles puseram": eles puseram, eles pusero e eles pôs (sem contar, evidentemente, a forma um pouco mais rara e motivada por outros fatores eles poram e as formas decorrentes da suposição de que o infinitivo do verbo seja "ponhar"). Verifica-se, além disso, que as três formas comportam marcas suficientes para indicar pluralidade: em "eles puseram" e "eles pusero", a pluralidade é indicada redundantemente, uma vez pelo pro­nome sujeito e outra pelas desinências (am num caso e o no outro); em "eles pôs", a pluralidade é indicada só no pronome sujeito, não havendo a redundância observada nas duas outras formas. Mas, evidentemente, ninguém confunde, e muito menos considera idênticas ou interpreta da mesma maneira as sequências "eles pôs" e "ele pôs". No contraste entre "eles puseram", "eles pusero" e "eles pôs", o gramático descritivista não está preocupado em apontar erros, mas pode ir além da constatação de que essas formas existem, verifi­cando, por exemplo, que elas são utilizadas por pessoas de diferentes grupos sociais ou, eventualmente, pelas mesmas pessoas em situações diferentes; constatará ainda que há uma resistência ou prevenção em relação a "eles pusero" e "eles pôs" porque não são formas utilizadas pelas pessoas cultas; percebe-se, assim, imediatamente, que o critério de correção não é linguístico, mas social.

GRAMÁTICAS INTERNALIZADAS

A terceira definição de gramática — conjunto de regras que o falante domina — refere-se a hipóteses sobre os conhe­cimentos que habilitam o falante a produzir frases ou sequências de palavras de maneira tal que essas frases e sequências são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua. Diante de frases como "Os meninos apanham as goiabas" ou "Os menino (a)panha as goiaba", qualquer um que fale português sabe que sáo frases do português (isto é, que não são frases do espanhol ou do inglês); isso tem a ver com aspectos observáveis das próprias frases, dentre os quais se podem enumerar desde características relativas aos sons (quais são e como se distribuem), até as relativas à forma das palavras e sua localização na sequência. Dada a maneira constante — isto é, que se repete — através da qual as pessoas identificam frases como pertencendo à sua língua, produzem e interpretam sequências sonoras com determinadas características, é lícito supor que há em sua mente conhecimentos de um tipo específico, que garantem esta estabilidade.
Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que tal conheci­mento é fundamentalmente de dois tipos: lexical e sintático-semântico. O conhecimento lexical pode ser descrito simplificadamente como a capacidade de empregar as palavras adequadas (isto é, instituídas historicamente como as palavras da língua) às "coisas", aos "processos" etc. O conhecimento sintático-semântico tem a ver com a distribuição das palavras na sentença e o efeito que tal distribuição tem para o sentido. O léxico tem implicações na sintaxe-semântica, na medida em que as palavras têm exigências em relação ao outro nível. Por exemplo, para empregar a palavra "dizer" é necessário saber o que ela significa, por um lado, e, por outro, saber o que ela significa tem a ver também com exigir que esse verbo tenha um sujeito de tal tipo, complemento(s) de tal outro tipo etc. Como consequência desse saber, diante de uma sentença como "E a raposa disse para o corvo...", o falante tem duas alterna­tivas: ou acha que a frase é estranha (sem sentido, de um certo ponto de vista, já que raposas não falam), ou tem que colocar-se num outro mundo (que é, certamente, a alternativa mais comum). Se ouvir alguém dizer "O meu mãe não gosta", o falante de português tem de novo que escolher: ou conclui que há um problema (uma regra violada, já que em português se diz "a minha mãe...") ou supõe que o falante é estrangeiro. De fato, este segundo fato seria uma explicação do primeiro — só um estrangeiro poderia produzir uma forma como essa.
Há dois tipos de fatos linguísticos que podem ser inter­pretados como dois fortes argumentos a favor da existência de gramáticas internalizadas, ou seja, na mente dos falantes, e que funcionam como a fonte das formas linguísticas produzidas. Como sempre, é no limite entre o aceitável e o não aceitável que estão os melhores materiais para ter acesso a supostas propriedades mentais. Os dados em questão provêm da fase de aquisição de uma língua e de fases de mudanças de dialetos por parte de adultos, especialmente, embora não exclusivamente.
Uma versão sobre a aquisição do conhecimento, em particular do conhecimento gramatical, diz que aprendemos por repetição. Simplificando, falamos o que falamos porque ouvimos. Ora, crianças tipicamente produzem pelo menos algumas formas que nunca ouvem consistentemente — podem até ouvi-las esporadicamente de outras crianças. Tais formas são tipicamente regularizadoras de formas irregulares. Os exemplos mais típicos sâo formas verbais como "eu sabo", "eu cabo", "eu fazi", "ele iu" etc. É bom que se diga que fatos semelhantes ocorrem também com crianças de outras naciona­lidades aprendendo outras línguas. E, ao contrário do que muitos pais e eventualmente professores poderiam pensar, quando crianças produzem essas formas "erradas" mostram que são normais. Problemático seria se não cometessem esses erros. Seria um sintoma de um cérebro pouco ativo, com problemas para uma aprendizagem autônoma.
Uma suposição razoável que se pode fazer para explicar estas formas na fala infantil é a seguinte: as crianças aprenderam regras de conjugação verbal, e é aplicando essas regras que produzem tais formas. A rigor, esta afirmação valeria mesmo se se admitisse que o aprendizado de certas regras se faz pela repetição. Mesmo assim, haveria um estágio em que a produção das sequências seria ativa, e resultaria da aplicação de regras conhecidas, internalizadas. E é isso que é de fato relevante.
Outro exemplo do mesmo tipo são as conhecidas hiper-correções. Falantes do meio rural ou com pouca instrução produzem formas como "meu fio" (filho). Se, em algum momento, puderem aprender, em contato com falantes de outros grupos, que as palavras certas são ''filho", "palhaço", "telha" etc., poderá ocorrer que apliquem a regra que muda "fio" em "filho" etc. sempre que o contexto for o mesmo ou semelhante. E dirão, eventualmente, coisas como "telha de aranha" (teia), "a pilha do banheiro" (pia) etc. Ora, nitidamente tais falantes não ouviram essas formas dos grupos dos quais ouviram "telha" — que ouviram quando se falava de cobertura de casas e não quando se falava de aranhas. Se não as ouviram, então as produziram ativamente, por sua conta.
Poder-se-ia comparar o que ocorre nesse caso com o que se dá com um dos comandos dos processadores de textos usados em microcomputadores. Se alguém quer, por exemplo, substituir uma palavra por outra num texto, ao invés de alterar uma ocorrência de cada vez, pode dar um comando ao compu­tador, que substituirá todas as ocorrências de um elemento por outro. Podem, então, ocorrer problemas. Suponhamos que se queira substituir a forma "ele" pela forma "ela". O computa­dor mudará todas as ocorrências de "ele" em "ela", todas as ocorrências de "aquele" em "aquela" (e pode ser que isso seja desejado pelo autor), mas mudará também sequências como "elemento" em "elamemo" (o que certamente é hipercorrigir...). O resultado não é bom, mas, pelo menos, descobre-se que há um princípio no programa computacional e como ele funciona. Sem querer apegar-me à metáfora computacional para explicar o funcionamento do cérebro, espero que a com­paração sirva para que a hipótese da gramática internalizada fique mais clara (e mais forte).
A esses conhecimentos, e às hipóteses por meio das quais os linguistas têm tentado organizá-las, chama-se, num sentido moderno do termo, gramática. Naturalmente, existem relações estreitas entre descrever uma língua e descobrir a "gramática" que os falantes dessa língua dominam. De fato, a questão pode ser assim resumida: uma gramática descritiva é tanto melhor quanto mais ela for capaz de explicitar o que os falantes sabem. Em outras palavras, quanto mais a gramática descritiva for um retrato da internalizada, que, a rigor, é seu objeto.
Assim como o conceito de gramática não é unívoco, assim também os conceitos de regra, de língua e de erro não o são. Por isso merecem um pequeno comentário.

REGRAS

Há dois sentidos em que se pode falar de regras: um deles traz consigo a ideia de obrigação, aproximando-se da noção de lei em sentido jurídico: a regra é algo a que se obedece, sob pena de alguma sanção. É nesse sentido que se fala das regras de etiqueta e do "bom comportamento". Quem as transgride é apontado como grosseiro, marginal ou caipira, e pode ser reprovado: sua companhia pode não ser procurada, perderá oportunidades de jantar com as pessoas chiques etc.
O outro sentido de regra traz consigo a ideia de regulari­dade e constância, aproximando-se da noção de lei no sentido de "leis da natureza". Por exemplo, a lei da gravidade sistematiza uma parte de nossas observações sobre os objetos que nos cercam.
As regras de uma gramática normativa se assemelham às regras de etiqueta, expressando uma obrigação e uma avaliação do certo e do errado. Seguindo-as, os falantes são avaliados positivamente (na vida social e na escola). Violan­do-as, os falantes tornam-se objeto de reprovação (são con­siderados ignorantes e não dignos de passar à série seguinte na escola, por exemplo). As regras de uma gramática descri­tiva se assemelham às íeis da natureza, na medida em que organizam observações sobre fatos, sem qualquer conotação valorativa. Um botânico não critica plantas por apresentarem tais e tais características — descreve-as, classifica-as; um químico não critica um elemento da natureza por produzir odores insuportáveis — descreve-o. Pois bem, nas línguas há regras semelhantes — embora variáveis. Por exemplo, em português, artigos vêm antes de nomes; pode-se ouvir "nós vamos" ou "nós vai", mas não se ouve "eu vamos". Ou seja, há combinações possíveis e outras impossíveis...
Pode-se falar em regras também em relação à terceira definição de gramática — a internalizada. As regras expres­sam, no caso, sem qualquer conotação valorativa, aspectos dos conhecimentos linguísticos dos falantes que têm propriedades sistemáticas. É importante que fique claro que seguir uma ou outra regra de uma gramática produz avaliações sociais do tipo "é culto", "é inculto". Mas, certamente, seguir uma ou outra regra não indica menor ou maior inteligência, maior ou menor sofisticação mental ou capacidade comunicativa.


LÍNGUA

A cada uma das definições de gramática apresentadas acima corresponde uma concepção diferente e compatível de língua.
Para a gramática normativa, a língua corresponde às for­mas de expressão observadas produzidas por pessoas cultas, de prestígio. Nas sociedades que têm língua escrita, é principalmente esta modalidade que funciona como modelo, acabando por representar a própria língua. Eventualmente, a restrição é ainda maior, tornando-se por representação da língua a expressão escrita elaborada literariamente. É a essa variante que se costuma chamar "norma culta" ou "variante padrão" ou "dialeto padrão". Na verdade, em casos mais extremos, mas não raros, chega-se a considerar que esta variante é a própria língua.
A gramática normativa exclui de sua consideração todos os fatos que divergem da variante padrão, considerando-os "erros", "vícios de linguagem" ou "vulgarismos". Nos compêndios gramaticais que circulam, há sessões desti­nadas a classificar os "vícios" de linguagem. Certamente, a preocupação fundamental é com o padrão linguístico, mas, de fato, nessa sessão misturam-se frequentemente problemas diferentes. Sem pretender esmiuçar a variedade de problemas aí colocados num conjunto, sabe-se que eles materializam diversas preocupações:
a) algumas têm a ver com "correção" gramatical, e aí estão, entre outros, os regionalismos e os solecismos;
b) outras demonstram preocupação com a pureza da língua, sendo os exemplos de estrangeirismos —que deveriam ser evitados— o caso mais claro;
c) outras mostram que os gramáticos têm também preo­cupação com regras de discurso — é o caso quando desaconselham os cacófatos, que, supostamente, serviriam para veicular temas ou falar de objetos censurados;
d) finalmente, há preocupação com as funções da lingua­gem, em especial com a expressão clara do pensamen­to — daí a condenação das ambiguidades, por exemplo.

Para a gramática descritiva, nenhum dado é desqualifi­cado como não pertencendo à língua. Ou seja, em princípio, nenhuma expressão é encarada como erro, o que equivaleria, num outro domínio, à anormalidade. Ao contrário, a gramática descritiva encara— considera um fato a ser descrito e explicado — a língua falada ou escrita como sendo um dado variável (isto é, não uniforme), e seu esforço é o de encontrar as regularidades que condicionam essa variação. Sabe-se hoje que a variação é condicionada tanto por fatores externos à própria língua quanto por fatores internos (falou-se deste aspecto na primeira parte, em "Não existem línguas uniformes"). São externos, entre outros, os fatores geográficos, os de faixa etária, os de classe social, de sexo, de grau de instrução, de profissão etc. Claramente, por exemplo, eles "puseram" é a forma preferida pelos falantes das classes sociais mais elevadas, mais instruídas, quando se expressam em situações formais. Dá-se o inverso com formas como "pusero", utilizadas por pessoas de menor instrução e qualificação social mais baixa, ou que se expressam em situações informais.
Pesquisas mostram que as pessoas utilizam muito mais frequentemente do que imaginam as formas de expressão que consideram erradas. Este fato, aliás, tem uma forte influência na mudança linguística: as formas "erradas" que as pessoas cultas começam a empregar perdem sua conotação negativa e acabam por tornar-se "certas". Os sociolinguistas em geral defendem a hipótese de que as regras são de natureza variável, de forma que é muito difícil para qualquer pessoa falar durante um certo tempo sem passar inconscientemente de uma variedade a outra.
Os condicionamentos internos estruturais da variação são também numerosos. Lembremos, a título de exemplo, a influência da preposição "para" na escolha das construções "para mim fazer" e "para mim ler". O Fundamento para a existência de expressões como "'para mim ler" não é simples­mente a ignorância, como a ignorância poderia fazer pensar. Há uma boa explicação interna à língua para esta forma variá­vel. Em poucas palavras: todos os falantes do português sabem que o pronome de primeira pessoa do singular, quando regido por preposição, é "mim", como se vê em frases como " vá por mim". "isso veio de mim". "aquilo era para mim". Generali­zando essa tendência a todos os empregos de "para" seguidos de pronome de primeira pessoa, chega-se naturalmente à cons­trução "para mim faaer", "para mim ler". Isto é, o fator interno que explica o aparecimento da forma ''mim" nessa construção é a preposição "para". Uma evidência a mais de que é a preposição "para" que condiciona o aparecimento de "mim" é que jamais se ouviria de falantes que dizem "para mim ler" a frase "se mim for" (se você ouvir essa forma, pode apostar que o falante é estrangeiro — ou que se tenta imitar um). Isso porque a conjunção "se" não influi em nenhum contexto na forma do pronome.
Como o dialeto padrão é apenas uma das variedades de uma língua, as gramáticas normativas dão conta apenas de um subconjunto dos fatos de uma língua. Não é surpresa que, em consequência dos privilégios que sempre recebeu por parte de escritores e gramáticos, e por causa de sua veemente e cara defesa, feita às vezes às custas da crítica a outras formas, essa variedade nos pareça "melhor", mais versátil e menos rude; entretanto, essa impressão não justifica a crença preconceituosa, infelizmente muito difundida na nossa sociedade, de que outras variedades são linguisticamente inferiores, erradas e incapazes de expressar o pensamento.
Se os fatos linguísticos são por natureza variáveis, pare­ce correto admitir que as regras que o falante implicitamente domina, e que o habilitam a utilizar de maneira regular sua variedade de língua e as variedades próximas, são também variáveis, no sentido de que incluem os condicionamentos externos e estruturais. Qualquer hipótese sobre o conhecimento linguístico dos falantes que não levasse em conta sua capaci­dade de adaptar-se às condições de fala e aos condicionamentos estruturais, por mais complexa que seja, não passa de uma simplificação grosseira e preconceitosa. Isso diz respeito a qualquer falante, inclusive, é evidente, aos falantes de grupos sacioeconomicamente desfavorecidos, que constituem hoje em dia a grande maioria dos alunos da escola pública.

ERRO
Passemos agora ao conceito de erro, que, como se pode prever, será diferente para cada definição de gramática e de língua.
A noção mais corrente de erro é a que decorre da gramática normativa: é erro tudo aquilo que foge à variedade que foi eleita como exemplo de boa linguagem. É importante, neste ponto, fazer duas considerações. A primeira é que "os exempIos de boa linguagem" são sempre em alguma medida ideais e são sempre buscados num passado mais ou menos distante, sendo, portanto, em boa parte arcaizantes, quando não já arcaicos. Certamente, embora em matéria de língua nada seja uniforme, os exemplos de boa linguagem utilizados pelas gramáticas são mais arcaizantes do que os encontrados em jornais e nos textos de muitos escritores vivos de qualidade reconhecida.
A segunda observação é que, apesar dessa tendência arcaizante registrada nas gramáticas — e mesmo nos manuais de redação de jornais —, há mudanças de padrão através da história. Esta observação é crucial. Não só há variação entre formas linguísticas padrões e populares ou regionais, mas há variação também no interior do padrâo. Em primeiro lugar, variação histórica. Por mais que a autoridade de Camões continue viva, ninguém incentivaria hoje os alunos de primei­ro e segundo graus a escrever "impostos que dos pobres contribuintes se pagam", por imitação a "mar que dos feos focas se navega". Se nada — nem mesmo a língua dos melhores escritores — avaliza a manutenção de uma norma imutável, por que não poderia a escola acompanhar mais de perto a norma culta real, tal como ela é utilizada, por exem­plo, nos jornais, que, para ficar num exemplo, já abandonaram há tempo a regência indireta de "assistir" e utilizam correntemente expressões como "muitas pessoas já assisti­ram esse filme" e "o jogo foi assistido por cem mi! pessoas" ?
Além disso, vale a pena observar que o padrão, mesmo o escrito, varia também na mesma época. Revistas para o grande público, revistas técnicas, crônias, reportagem etc. não são escritas exatamente segundo as mesmas regras. Uma ob­servação razoável confirmará essa afirmação.
Na perspectiva da gramática descritiva, só seria erro a ocorrência de formas ou construções que não fazem parte, de maneira sistemática, de nenhuma das variantes de uma língua. Uma sequência como "os menino", cuja pronúncia sabemos ser variável (uzmininu, ozminino, ozmenino etc.), que seria claramente um erro do ponto de vista da gramática normativa, por desrespeitar a regra de concordância, nao é um erro do ponto de vista da gramática descritiva, porque construções como essa ocorrem sistematicamente numa das variedades do português (nessa variedade, a marca de pluralidade ocorre sistematicamente só no primeiro elemento da sequência — compare-se com "esses menino", " dois menino" etc.). Seriam consideradas erros, ao contrário, sequências como "essas me­ninos", "uma menino", "o meninos", "tu vou", que só por engano ocorreriam com falantes nativos, ou então na fala de estrangeiros com conhecimento extremamente rudimentar da língua portuguesa.
A adoção de um ponto de vista descritivo permite-nos traçar uma diferença que nos parece fundamental: a distinção entre diferença linguística e erro linguístico. Diferenças linguísticas não são erros, são apenas construções ou formas que diver­gem de um certo padrão. São erros aquelas construções que não se enquadram em qualquer das variedades de uma língua.
Saber uma língua é, entre outras coisas, dispor de um conjunto articulado de hipóteses sobre as regras que a língua segue. De alguma maneira, estamos sempre incorporando e manipulando hipóteses desse tipo. Além disso, parece certo que nosso conhecimento de uma língua não é um rol de frases prontas, mas um conjunto de regras que acionamos conforme as circunstâncias. Acontece às vezes que os falantes formulam, interiorizam e acionam hipóteses equivocadas, principalmente no que se refere a forma das palavras ou à sua significação, ou estendem em excesso a aplicação de hipóteses corretas. Al­guém que fale "desentupidor de pilha" por "desentupidor de pia", "vitror" por "vitrô", "solvete" por "sorvete", ou que escreva "poude" por "pôde" ou  "poder-mos" por "poder­mos" estaria cometendo erros, por produzir expressões que não existem de forma sistemática em nenhuma variedade da 1íngua falada ou escrita.
Mas, esses erros têm sempre uma motivação forte. O caso de "pilha" por "pia" é próprio de falantes em cujo dialeto nativo o "lh" não é pronunciado. No momento em que entram em contato com a variedade padrão, tudo indica que esses falantes, ao mesmo tempo em que aprendem a pronunciar "filha" no lugar de "fia" ou "palha" no lugar de "paia", formulam a hipótese de que "lh" é o equivalente de "i" antes de vogal. Aplicando, embora equivocadamente, esta regra a todo "i" intervocálico, produzem o que se chama tecnicamente de hipercorreções. Explicações análogas dão conta de " vitror-vitrô", "solvete-sorvete", "poude-pôde". O caso de "poder­mos" é típico da escrita, e pode ser explicado pela conjunção de dois fatores: de um lado, a sensação —- correta — de que "poder" é uma palavra completa em outros contextos; de outro, o uso de hífen, correto tom os pronomes átonos, por exemplo em "ver-nos", "dizer-nos" etc. A semelhança de "mos" (que não é uma palavra) com "nos" (que é uma palavra) favorece a confusão.
Na escola, seguramente, os erros de ortografia ocupam uma grande parte do tempo e das energias do professor. Há dois tipos de erros ortográficos, ambos fortemente motivados: os que decorrern da falta de correspondência entre sons e letras, mesmo para uma variante padrâo de uma mesma região, e os que decorrem da pronúncia variável em regiões ou grupos sociais diferentes. Os dois tipos de erros podem ser exemplifícados por duas dificuldades distintas na grafia da palavra "resolveu": a dificul­dade de escolher entre s e z na segunda sílaba decorre da falta de correspondência exata entre sons e letras no sistema ortográfico vigente; s e z são, nessa palavra, duas grafias teoricamente possí­veis para o mesmo som, e não é de admirar que sejam usadas uma pela outra; por outro lado, a dificuldade de escolher entre l e u no final da mesma sílaba tem a ver com variações geográficas ou sociais na pronúncia. Para a grande maioria dos brasileiros, não há qualquer diferença entre o som que se escreve com l no final da sílaba e o u de "pausa"; as palavras "alto" e "auto" não diferem na pronúncia. Pode-se, portanto, esperar que, na aquisição da escrita, sejam numerosas as trocas de l por u e, por hipercorreção, de u por l. Esse tipo de erro decorre provavelmente do fato de que o aluno espera — até como consequência dos métodos de alfabetização — que haja uma correspondência confiável entre som e letra, uma expectativa que leva às dificuldades exemplificadas com "resolveu", mas que pode levar a dificulda­des muito mais dramáticas quando o aluno vem de um meio linguístico em que a pronúncia usual é "arve", "cuié" e "calipe" (por "árvore'', "colher" e ''eucalipto''). Nesses casos, a distância que o aluno precisa percorrer desde seus conhecimentos linguís­ticos reais até a grafia da variante padrão é maior do que o aprendizado de um código em que os sons se convertem em letras. Acrescente-se a dificuldade de aprender expressões que podem ser tão estranhas como as de uma língua estrangeira.

ESBOÇO PRÁTICO

Deveria ter ficado claro, até aqui, que, além de não ser necessário ensinar gramática na escola, pelo menos no sentido corrente desta palavra, também é necessário sofisticar um pouco a concepção do campo. No que segue, vou simular uma situação radical — embora não irreal. Para o caso de ser necessário ou obrigatório ensinar gramática, (digamos, por medida provisória), quero mostrar rapidamente alguma utilidade e operacionalidade do que até aqui foi dito sobre os vários conceitos de gramática (não só, mas também para não ser acusado de "teórico").

1. Gramática
Na metodologia rapidamente sugerida, ensinar gramática pode continuar a ser um objetivo válido. Lembre-se, porém, que há pelo menos três concepções de gramática. O que se sugere é que a prioridade a adotar na escola deveria ser a inversa da seguida na apresentação desses conceitos. O mais importante é que o aluno possa vir a dominar efetivamente o maior número possível de regras, isto é, que se torne capaz de expressar-se nas mais divertas circunstâncias, segundo as exi­gências e convenções dessas circunstâncias. Nesse sentido, o papel da escola não é o de ensinar uma variedade no lugar da outra, mas de criar condições para que os alunos aprendam também as variedades que não conhecem, ou com as quais não têm familiaridade, aí incluída, claro, a que é peculiar de uma cultura mais "elaborada". É um direito elementar do aluno ter acesso aos bens culturais da sociedade, e é bom não esquecer que para muitos esse acesso só é possível através do que lhes for ensinado nos poucos anos de escola.
Por mais distante que a linguagem do aluno esteja da variedade padrão, ela é extremamente complexa, articulada, lon­ge de ser um falar rudimentar e pobre (que o digam os linguístas que se dedicaram à tarefa de descrever variedades regionais e sociais, ou mesmo a linguagem infantil). Se a escola desconside­rar essa riqueza linguística que a criança traz — seu capital linguístico —, estará pecando pela base, desperdiçando material extremamente relevante (espero que isso tenha ficado claro em "Sabemos mais do que pensamos" e em "Sabemos o que os alunos ainda não sabem?"). Se atentarmos para o tipo de aprendizado que levou a criança ao domínio de sua variedade linguís­tica, antes mesmo da experiência escolar, poderemos aceitar sem discussão de detalhes que esse aprendizado se deu pela exposição e participação na fala dos grupos com os quais conviveu. Essa é a metodologia bem-sucedida para o aprendizado de qualquer língua ou variedade: exposição aos dados. A aceitacão de que o objetivo prioritário da escola é permitir a aquisição da gramática internalizada  compromete a escola com uma metodologia que passa pela exposição constante do aluno ao maior número possí­vel de experiências linguísticas na variedade padrão. Trocando em miúdos, prioridade absoluta para a leitura, para a escrita, a narrativa oral, o debate e todas as formas de interpretação (resu­mo, paráfrase etc.). Essas é que são as boas estratégias de ensinar língua — e gramática. Pode parecer paradoxal, mas não se incluem entre elas as liçoes de nomenclatura e de análise sintática e morfológica, tão entranhadas na prática corrente.
Não se trata de excluir das tarefas da escola a reflexão sobre a linguagem, isto é, a descrição de sua estrutura ou a explicitação de suas regras, tarefas essas que estariam incluí­das nas definições normativa e descritiva de gramática. Tra­ta-se apenas de estabelecer prioridades, deixando claro que não faz sentido, dado o objetivo da escola, descrever ou tentar sistematizar algo de que não se tenha o domínio efetivo. Pense-se no que aconteceu durante décadas no ensino de línguas estrangeiras: ensinavam-se as regras gramaticais des­sas línguas e o resultado era invariavelmente a incapacidade dos alunos de as falarem. Não teria sido mais proveitoso ocorrer o inverso, isto é, que se aprendesse a falar essas línguas, ao invés de falar sobre elas? O mesmo vale para a variedade padrão do português: mais vale que ela seja domi­nada, ainda que não descrita, do que apenas descrita.

2. Língua
Defendendo a concepção de ensino de gramática exposta acima, seria incoerente concordar com formas de ensino que reduzem a língua a uma única variedade, mesmo que se trate da variedade socialmente prestigiada. Dentre as concepções de língua consideradas mais acima, o ensino deve dar prioridade à língua como conhecimento interiorizado, e isso leva a lembrar uma comparação instrutiva feita por Chomsky: a tarefa da criança que aprende a língua e a do linguísta que procura descobrir e explicar o seu funcionamento são em grande me­dida semelhantes. De fato, o processo é, em ambos os casos, de formulação, teste, aceitação ou recusa de hipóteses a respei­to de dados. Em ambos os casos, é essencial uma vivência profunda, ainda que intuitiva, dos dados. Assim, fica de novo óbvia a necessidade de expor o aluno a experiências que o obriguem a viver a variedade que se quer que ele aprenda. Fica óbvia também a ideia de que, antes de descrever a sintaxe e a morfologia das expressões, o professor deve certificar-se de que o aluno sabe usá-las e entendê-las. Usar e entender não é apenas saber apontar expressões equivalentes, mas é também conhecer em que medida as expressões se adaptam a situações concretas. Todo falante — e as crianças são sob esse aspecto quase tão sagazes quanto qualquer adulto — sabe avaliar o valor social das expressões, perceber quando soam "estra­nhas", "gozadas", "malcriadas", ou quando identificam o falante como estrangeiro, ou como originário de outra região ou classe social. Nos momentos em que a escola toma a língua como assunto sobre o qual se fala, a reflexão sobre os valores sociais e situacionais das variantes linguísticas deveria, aliás, receber preferência sobre a análise da estrutura. Não se trata, é claro, de substituir os manuais de análise sintática por capítulos sobre variação linguística, e menos ainda por listas de expres­sões e modos de dizer próprios de ricos e pobres, nortistas e sulistas, situações formais e informais. Isto seria, de novo, levar para a sala de aula questões artificiais, ignorando que há, no próprio conhecimento do aluno e no confronto com a variedade padrão, material de trabalho mais do que suficiente. Acrescen­te-se que é no momento em que o aluno começa a reconhecer sua variedade linguística como uma variedade entre outras que ele ganha consciência de sua identidade linguística e se dispõe à observação das variedades que não domina.

3. Regra

Costuma-se pensar o ensino da língua como ensino de gramática, e o ensino de gramática como ensino de regras. Pode até ser interessante manter esta fórmula dando-lhe, porém, um conteúdo novo. Ensinar gramática é ensinar a língua em toda sua variedade de usos, e ensinar regras é ensinar o domínio do uso. O outro sentido de "'ensinar regras", o das gramáticas tradicionais e da maioria dos manuais didáticos, é pedagógica e cientificamente suspeito. As gramáticas tradicionais nos dão uma impressão de exaustividade às custas de uma extrema superficialidade e vagueza. Por mais que isso possa parecer paradoxal, é o conhecimento da língua que faz com que com­preendamos aquilo que os compêndios gramaticais dizem a seu respeito e é eventualmente a falta de domínio de determinada estrutura que faz com que os alunos apresentem dificuldades na análise. Na melhor das hipóteses, as regras gramaticais de um compêndio têm da língua uma visão estereotipada e artifi­cialmente simples.

4. Erro

Sendo a língua uma realidade essencialmente variável, em princípio não há formas ou expressões intrinsecamente erradas. No entanto, na situação peculiar da escola, onde o aluno está para aprender uma variedade que não domina, ocorrem dois tipos de situação que poderiam ser caracterizados como "erros escolares": em primeiro lugar, pode ocorrer que o aluno utilize variantes não padrões em situações nas quais a variante padrão seria exigida (a escola é, em muitos momentos, um lugar de interaçâo formal, e a escrita, tal como a conhece­mos, tem recursos apenas para registrar a variedade padrão). Para esse tipo de erros, ortográficos ou gramaticais em sentido mais amplo (concordância, regência etc.), é ingênuo supor que há correção imediata possível. Ainda mais ingênuo é supor que se eliminam por exercícios. Formas inadequadas desse tipo tenderão a desaparecer com o domínio progressivo da varieda­de padrão. Tratar esses usos inadequados como marcas de incompetência ou "burrice" produz como único resultado a resistência do aluno, que tenderá a achar-se "fraco" ou "sem capacidade" para aprender português, assumindo como real o papel que lhe é atribuído por preconceito.
Um segundo tipo de "erro escolar" decorre de estar o aluno aprendendo uma variedade nova. Como as variedades novas só se aprendem pela formulação de hipóteses, é possível que algumas das hipóteses que o aluno formula sejam inade­quadas. A correção desses erros pode ser feita pela simples apresentação da forma correta. Como no primeiro caso, não cabe encará-los como marcas de uma deficiência intelectual incurável. Eles revelam, ao contrário, que o aluno é sensível para analogias reais, um tipo de sensibilidade que o professor de português deveria ter todo o interesse em estimular e tomar como aliado.
Sendo um pouco mais concreto e prático, penso que, levando em conta os três conceitos de gramática apresentados acima, poder-se-ia fazer uma proposta elementar do ensino de gramática na escola. Tal proposta, como ficou dito, consistiria em trabalhar na escola com essas três gramáticas, em ordem de prioridade inversa em relação à ordem de sua apresentação, isto é, privilegiando a gramática internalizada, em seguida, a descritiva e, por último, a normativa. Isso deveria ser entendido da seguinte maneira: quando o aluno chega à escola com seis ou sete anos, domina uma certa quantidade das possibilidades da língua, isto é, ele sabe muito, mas ainda não domina certos (muitos?] recursos, seja porque não são muito utilizados no ambiente social no qual ele vive e aprendeu o que conhece da língua, seja porque são recursos que não mais ocorrem na língua falada — se são recursos exclusivos da escrita, é óbvio que o aluno iniciante ainda não teve acesso a elas. Só o terá se vier a ler. Um exemplo que me ocorre são as formas do mais-que-perfeito. Ninguém conhecerá formas como "fora, chegara, estivera" se não ler, porque, de fato, não são mais faladas. Ora, uma das funções da escola é possibilitar o domínio do padrão estrito. Portanto, a primeira tarefa da escola, do ponto de vista do ensino da gramática, é aumentar o domínio de recursos linguísticos por parte do aluno. Isso se faz expondo o aluno consistentemente a formas linguísticas que ele não conhece, mas deve conhecer para ser um usuário competente da língua escrita. Se tais formas não são faladas, só um bom programa de leitura pode produzir a exposição necessária ao aprendizado ativo. O aluno aprendeu o dialeto com o qual tomou contato falando e ouvindo ativamente, na maior parte na própria família, algumas coisas com outras crianças da sua idade, outras com os marmanjos que lhe ensinam alguns dos segredos da vida, outras assistindo a programas de televisão. Seguindo o mesmo processo, vai aprender outras formas lendo, em especial aquelas que tipicamente estão apenas nos livros.
Para o aprendizado da língua, tanto da modalidade oral por parte da criança, quanto da escrita na escola, não faz sentido pensar em fases: primeiro tal estrutura, depois outra, da mais simples à mais complexa. Aprende-se tudo mais ou menos ao mesmo tempo. Assim, a escola deveria acreditar que a saída é ler muito, aumentar o repertório do aluno, suas possibilidades de contato com mundos linguísticos que ele ainda não conhece através dos livros. O extremo desse projeto, se a escola for bem-sucedida, será o aluno acabar aprendendo português ar­caico, de tanto ler lextos antigos, depois de ler todos os mais recentes...
Em segundo lugar, em termos de prioridade, entraria a gramática descritiva. Ensinar gramática descritiva não seria, evidentemente, ensinar linguística na escola. A proposta é a seguinte: diante do domínio linguístico efetivo da língua que o aluno revela na escrita, ou dos problemas que manifesta em suas atividades de escrita, deve-se aprender a comparar e/ou propor diversas possibilidades de construção. A proposta con­siste em trabalhar os fatos da língua a partir da produção efetiva do aluno. Suponhamos que o aluno escreva numa de suas histórias uma frase simples do tipo "nós foi pescar". O que fazer? A partir das atitudes típicas de quem faz gramática descritiva, o trabalho em sala de aula implicaria em escrever essa sequência no quadro e discutir com os alunos quem a utiliza tipicamente, se, e em que condições, pode ser usada na escrita, se é ou não é adequada e, finalmente, quais são as maneiras alternativas de dizer "a mesma coisa". De uma discussão como essa, eu suponho, em primeiro lugar, que saiam pelo menos quatro construções:
a) nóis foi pescar;
b) a gente foi pescar;
c) a gente fomos pescar;
c) nós fomos pescar
Isso significa dizer que, em português, há quatro manei­ras de verbalizar ou narrar esse mesmo fato. Nenhuma dessas formas pode ser condenada, do ponto de vista descritivo, mas elas podem ser ordenadas do ponto de vista de sua aceitabili­dade na escrita. E isso já seria introduzir os critérios da gramá­tica normativa. A ordem de aceitabilidade das estruturas é, provavelmente, "nós fomos pescar", "a gente foi pescar", "a gente fomos pescar", "nós foi pescar". A primeira e a segunda forma são ambas do dialeto padrão, e a escolha entre uma delas depende do grau de formalidade do texto. A terceira forma pode parecer estranha, mas aparece em escritores, e pode até ser tratada como figura de linguagem — silepse de número (ou pode ser um exemplo de concordância ideológica, isto é, con­cordância com o conteúdo e não com a forma). Finalmente, a última forma só pode ser escrita para representar a fala de uma personagem que se queira caracterizar de forma "realista". O que exige que seja escolhida conscientemente para tal finalida­de, e não que reflita apenas o estado de conhecimento da língua pelo aluno.
Espero que se concorde que essa é uma aula de gramá­tica, e é um tanto irrelevante se, para ministrá-la, usa-se ou não terminologia técnica. Eu sugeriria que se falasse normalmente em concordância, em verbo, em sujeito, em pronome, em plural etc., sem que a terminologia fosse cobrada, de forma que, eventualmente, ela passasse a ser dominada como decorrência de seu uso ativo, e não através de listas de definições.
O que o aluno produz reflete o que ele sabe (gramática internalizada). A comparação sem preconceito das formas é uma tarefa da gramática descritiva. E a explicitação da aceita­ção ou rejeição social de tais formas é uma tarefa da gramática normativa. As três podem evidentemente conviver na escola.
Em especial, pode-se ensinar o padrão sem estigmatizar e humilhar o usuário de formas populares como "nós vai". (Na verdade, a compararão entre tais formas pode ser enriquecida através de comparações com formas de outras línguas, o que implicaria na introdução informal — mas não inútil — de uma gramatiquinha comparativa.).
Vou dar mais alguns exemplos rápidos do que seriam pequenas aulas de português (ou de gramática, nesse sentido). Outro exemplo de aula de português que equivale a uma aula de gramática seria partir de uma construção e dizer "a mesma coisa" de todas as formas que se puder obter, alterando o ponto de vista, ou seja, alterando a estrutura da frase sem alterar radicalmente seu sentido. Veja-se essa atividade feita a partir de uma frase comum, "o telhado da casa foi derrubado por uma violenta tempestade". Pode-se tomar uma frase como essa e pedir que a classe rearranje esse mesmo evento de vários pontos de vista. Para exemplificar o procedimento, listo abaixo um certo número de alternativas, repetindo antes a forma original:
a) O telhado da casa foi derrubado por uma violenta tempestade.
b) A tempestade violenta derrubou o telhado da casa.
c) O telhado da casa caiu por causa da tempestade violenta.
d) Foi a violenta tempestade que derrubou o telhado da casa.                                          
e) O que derrubou o telhado da casa foi a tempestade violenta.
f) A violência da tempestade foi tanta que derrubou o telhado da casa.
g) Tamanha foi a violência da tempestade que derrubou o telhado da     casa.
h) A casa teve seu telhado derrubado pela violência da tempestade.
i)  A casa teve seu telhado derrubado por uma tempesta­de violenta.
A esses exemplos poderia acrescentar mais um ou dois, introduzindo formas mais marcadas socialmente (formas ta­bus, mas que pertencem indiscutivelmente à língua):
j) Foi uma puta tempestade que arrancou a porra do telhado.
l) A bosta do telhado caiu foi por causa de uma tempes­tade do caralho.

Certamente, se eu consegui construir essas alternativas sozinho, uma sala com trinta alunos pode conseguir muito mais. O que se aprende com isso? Várias coisas: a primeira é o que gastaria de chamar de "lei Ibrahim Sued". 0 nome deriva da seguinte história: dizem que Ibrahim Sued, que era considerado ignorante em matéria de língua, pediu um dia a sua secretária que preenchesse um cheque de sessenta cruzei­ros. Quando foi datilografar o cheque, a secretária teve uma dúvida, e perguntou: "— Doutor, "sessenta" é com c ou com ss?" Ele pensou um pouco e respondeu: "— Faça dois de trinta". Eu acho a lei Ibrahim Sued aplicada ao estilo funda­mental no ensino de língua. Aprender uma língua é aprender a dizer a mesma coisa de muitas formas. Não se deveria imaginar que existe só uma forma de falar, isto é, que um cheque tem que ser sempre de sessenta. Isto é, a língua nos dá sempre várias alternativas, e saber uma língua ativamente e "utilizá-la" como sujeito é em boa parte saber dizer uma coisa de muitas maneiras — inclusive, saber as pequenos diferenças de sentido e de condições de uso que essas várias maneiras implicam e supõem.
Meu último exemplo é baseado em um trecho de uma redação de aluno que um professor de cursinho criticou em um jornal. O aluno escreveu, entre outras coisas, a seguinte sequência: "... que acabam fazendo críticas destrutivas que não são cons­trutivas, quando levam a pessoa a reagir assim, de tal forma".
Eu diria, simulando estar numa aula em que se discu­tem textos produzidos por alunos, que o problema desse trecho, se é que se pode falar de problema, é que ele tem características tipicamente orais. Nós falamos assim. Nós falamos "assim desse jeito", "assim de tal forma" e ninguém vê problema nisso. É que frequentemente há redundâncias (aliás, há interessantes estudos sobre a redundância e a repe­tição na língua falada). Mas, dizer que falamos de forma semelhante não significa dizer que essa não é a única opção. Por isso, provavelmente, a primeira atividade que se poderia fazer com esse texto numa aula seria trabalhar para substituir as marcas de oralidade. A primeira medida seria tirar "as­sim". Veja-se que, retirando essa palavra, uma só palavra bem escolhida, o texto já parece "normal". O que ocorre é que, se o texto tem um traço que nos soa negativo, já nos parece que só contém problemas. Outra sequência que pode ser alterada é: "e acabam fazendo críticas destrutivas que não são construtivas". Muitos criticariam aqui a existência de uma redundância. Mas, veja-se o texto de outro ponto de vista, e pode-se encontrar não mais uma redundância, mas uma ênfase. Uma das formas de enfatizar é repetir, mudando
alguma coisa, que é o que ocorre aqui (destrutivas, que não são construtivas). Do ponto de vista da aceitabilidade dessa construção, pode-se concluir, por exemplo, que, se se quer escrever um texto curto e enxuto — se temos pouco espaço, como num jornal — deve-se proceder a mudanças que elimi­nem os "excessos" (retirar "assim" e ainda escolher uma dentre as duas alternativas: ou "destrutivas" ou "que não são construtivas"). O texto ficaria, por exemplo: "e acabam fazendo críticas negativas quando levam a pessoa a reagir de tal forma". Plenamente aceitável. Mas, suponha-se que se está escrevendo uma fala de personagem teatral, ou de novela, e que se quer produzir um efeito de informalidade. Para obter esse efeito, a versão mais "correta" e enxuta não é adequada. A melhor seria a original, aquela que parece ter problemas.
A moral da história é que não existem propriamente textos errados e textos corretos (pelo menos, nem sempre), mas, fundamentalmente, textos mais ou menos adequados, ou mesmo inadequados a determinadas situações.
Como se vê, não se está propondo um roteiro metodoló­gico que só possa ser executado por pessoas altamente espe­cializadas ou que trabalham em condições absolutamente excepcionais. Sua execução depende apenas de bom senso, um pouco de capacidade de observação e disposição para abrir mão de atitudes puristas em relação à língua. Se os professores observássemos mais nossa própria linguagem em situações, diversas, perceberíamos o quanto ela varia. Longe de revelar incompetência profissional, esse fato indica que somos falantes normais, capazes de nos adaptar às circunstâncias.
É certo que não há, para esse roteiro, materiais didáticos prontos. Mas, a própria natureza desse tipo de roteiro coloca o material didático em plano secundário, já que o material prio­ritário do trabalho é a produção linguística do aluno, ao lado de uma pequena coleção de materiais de leitura.
Deveria ter ficado claro nas entrelinhas que as suges­tões se resumem a uma única grande ideia: fazer com que o ensino do português deixe de ser visto tomo a transmissão de conteúdos prontos, e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser a única fonte autorizada de informa­ções, motivações e sanções. O ensino deveria subordinar-se à aprendizagem.


FIM

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